Na “velha ordem” do Banco Mundial, os burocratas esconderam nas gavetas da instituição, há mais de um ano, o projeto que deveria orientar a estratégia do banco para a Argentina. Sem isso, os técnicos não podem nem sequer cogitar algum projeto de financiamento ao país. Enquanto isso, em tempo recorde, aprovou-se pacote bilionário para a Ucrânia, nação em pedaços, sem estabilidade financeira e em guerra civil. Contradições como essa incomodam os chamados mercados emergentes independentes dos países desenvolvidos.
O recém-criado banco dos Brics, o grupo que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, dificilmente vai se abrir aos argentinos sem exigência de garantias ou compromissos sérios do governo local (pelo menos, os técnicos dos cinco países prometem uma instituição assentada em bases técnicas e de boa governança). Mas poderá permitir, por contraste, avaliar o quanto há de pura política “ocidental” (Japão incluído nesse Ocidente) nos procedimentos e decisões de bancos multilaterais, mascarados de racionalidade administrativa.
O capital do banco, de US$ 50 bilhões iniciais, a serem integralizados em cinco anos, ainda que esse valor possa ser multiplicado ao servir de base para captar mais recursos para empréstimos no mercado, mostra que essa será mais uma instituição entre muitas. A China já investe na constituição de um organismo financeiro semelhante, só com países asiáticos; o BNDES brasileiro emprestou, só no ano passado, mais de R$ 62 bilhões em projetos de infraestrutura no Brasil e R$ 58 bilhões para investimentos industriais no país, valor em dólares próximo ao capital do novo banco.
O novo banco é uma aposta financeira e política
O banco dos Brics e os recém-assinados acordos de cooperação entre bancos de desenvolvimentos dos cinco países não concorrerão com as instituições multilaterais tradicionais, mas vão aproximar governos que hoje desconhecem as oportunidades de negócio e financiamento entre si.
Como disse o Prêmio Nobel Joseph Stiglitz à agência Russia Today, “o que ele [o banco dos Brics] está dizendo realmente é que, apesar de todas as diferenças, os mercados emergentes podem operar juntos, de um modo mais efetivo do que operam os países avançados”. Isso dependerá, é claro, do comportamento dos cinco sócios, que, no papel, têm o mesmo poder de decisão e de veto; basta a discordância de um país para barrar qualquer medida, o que contraria a tese de que, na prática, a instituição será um joguete nas mãos dos poderosos chineses.
O que fará e como será o Novo Banco de Desenvolvimento criado pelos Brics também depende de discussões cruciais nos próximos anos, enquanto o acordo assinado pelos cinco chefes de Estado, em Fortaleza, na semana passada, passa pela necessária aprovação do Poder Legislativo. O Brasil, por saber da importância desses primeiros passos, quis indicar o primeiro executivo a assumir o mandato de quatro anos na presidência da nova instituição. A primeira reunião dos técnicos para discutir o tema em Fortaleza, porém, foi interrompida com menos de dez minutos, quando os representantes da Índia disseram não aceitar nem a sede do banco fora de Nova Déli.
Os outros sócios mostraram-se dispostos a atender a China, fixando a sede do novo banco em Xangai – e acomodando os interesses da África do Sul com a criação de uma sede regional africana. Com a resistência indiana, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, chegou a considerar a hipótese de adiar a decisão sobre sede e presidência do banco para a reunião dos ministros dos Brics às margens do encontro anual do FMI, em setembro. Foi a presidente Dilma Rousseff quem determinou que teria de haver acordo, com a cessão do primeiro mandato da presidência à Índia. Coube ao Brasil a presidência do conselho de diretores, que, pelas negociações anteriores, deveria ser um cargo acumulado com a presidência executiva do banco.
Na sequência, o governo passou a argumentar que a presidência executiva do banco não será tão relevante nos anos iniciais da nova instituição. Curiosamente, pouco se falou do fato de que, realmente, a presidência do Conselho detida pelo Brasil será fundamental para assegurar que o Novo Banco de Desenvolvimento tenha o formato defendido pelo governo brasileiro, capaz de apoiar projetos de desenvolvimento, como faz o BNDES, a partir de análises bem fundamentadas tecnicamente – ainda que com evidentes desdobramentos geopolíticos.
Enquanto o presidente indiano (com um vice brasileiro), instalado em Xangai, tomará as providências práticas para o dia a dia, é o Conselho de Diretores presidido pelo Brasil quem definirá a estrutura de funcionamento da nova instituição, os critérios para contratação “por mérito” de funcionários e dirigentes, as normas para receber e processar projetos e pedidos de financiamento.
O anúncio, em Brasília, da disposição em dar apoio financeiro chinês de até US$ 35 bilhões aos países latino-americanos mostra que a China não precisa do novo banco dos Brics para estender sua influência bem além da Ásia e da África. Até nas discussões bilaterais com o Brasil os chineses mostraram que não são tímidos ao mostrar seu poderio financeiro. Mas estão abertos a arranjos de todo tipo.
A anunciada venda de jatos da Embraer, por exemplo, será impulsionada com um inédito acordo entre Eximbank chinês e BNDES, do qual resultará uma linha especial de financiamento especificamente criada para apoiar a venda de aeronaves. Linhas similares estão em cogitação para outros ramos de exportação. O Novo Banco de Desenvolvimento é uma aposta financeira e política, e mais que isso. As discussões, presididas pelo Brasil, para desenhar as futuras operações do banco mostrarão a capacidade dos Brics para, de fato, atuar coordenadamente em um modelo concorrente ao das tradicionais instituições financeiras internacionais.
Fonte: Valor Econômico – Sergio Leo
Sergio Leo é jornalista e especialista em relações internacionais pela UnB. É autor do livro “Ascensão e Queda do Império X”, lançado em 2014. Escreve às segundas-feiras. E-mail: sergioleo.valor@gmail.com