Depois de anos de euforia, trazida pela chuva de encomendas e investimentos do setor de petróleo e gás, parte da indústria naval brasileira enfrenta agora águas turbulentas. No Rio de Janeiro, o estaleiro Eisa, do grupo Synergy, em crise financeira, paralisou atividades, e o OSX está em recuperação judicial. No Rio Grande do Sul, o polo naval do Jacuí, em Charqueadas, vive outro drama. Sua principal empresa, a Iesa Óleo e Gás, passa por dificuldades de caixa, que agora deverão ser resolvidas com a aquisição do estaleiro pela Andrade Gutierrez.
Esta situação localizada contrasta com os números e as expectativas do setor naval, que permanecem gigantescos. Dados do Sindicato Nacional da Indústria da Construção e Reparação Naval e Offshore (Sinaval) mostram que há 390 encomendas na carteira dos estaleiros nacionais. Elas estão avaliadas em mais de R$ 110 bilhões, considerando que a maior parte do bolo – cerca de R$ 54 bilhões – se refere à produção de 29 sondas para a Sete Brasil, que vai arrendar 28 delas à Petrobras, e as plataformas para a estatal, avaliadas em R$ 53,4 bilhões. Não estão sendo contados os valores de navios e embarcações diversas.
Embora as perspectivas sejam positivas, os imbróglios gaúcho e fluminense acenderam um sinal de alerta sobre a gestão de empresas ligadas ao setor naval e a capacidade de cumprimento de prazos. A presidente da Petrobras, Graça Foster, tem dito que o cronograma de entrada em operação das unidades de produção da empresa é prioridade. Tanto que a estatal chegou a encomendar obras de cascos de plataformas fora do Brasil, para evitar atrasos. Em meados de julho, Graça Foster esteve com o governador Tarso Genro (PT), no Rio Grande do Sul, em busca de soluções para Charqueadas.
Explica-se o interesse: a Iesa Óleo e Gás tem um contrato para fabricar 24 módulos para Floating Production Storage and Offloading (FPSO), espécie de navio-plataforma, para a estatal. É um negócio de US$ 800 milhões e os primeiros módulos estão atrasados. O Eisa tem contratos de US$ 1,6 bilhão, entre eles sete cargueiros para a Log-In Logística Intermodal. Três foram entregues, um deveria ficar pronto até o fim do ano e os demais estão atrasados. A previsão era que o Eisa retomasse as atividades no fim de julho. No mercado, comenta-se que o estaleiro será vendido.
“O sistema produtivo da construção naval brasileira é muito bem estruturado e tem uma demanda firme de encomendas”, diz o presidente do Sinaval, Ariovaldo Rocha. Para ele, os problemas pontuais estão sendo equacionados e tendem a ser resolvidos com soluções de mercado, de forma a preservar os contratos e os empregos criados em diversos Estados. Segundo o Sinaval, o setor emprega mais de 78 mil pessoas, das quais 30 mil no Rio de Janeiro. Estima-se que outros 20 mil postos de trabalho diretos sejam gerados com os novos estaleiros que estão surgindo.
A Petrobras é a maior força do setor naval. Dados da empresa revelam que de 2012 a 2020 são US$ 100 bilhões contratados para barcos de apoio, sondas, navios e plataformas. Só o seu braço logístico, a Transpetro, toca o Programa de Modernização e Expansão da Frota (Promef), com encomendas de 49 petroleiros e 20 comboios hidroviários. Soma US$ 11,2 bilhões e tem entregas previstas até 2020. Já o Promef Hidrovias prevê R$ 432 milhões para a construção de 20 empurradores e 80 barcaças. Eles formarão 20 comboios hidroviários para transporte de etanol.
Há ainda outras demandas bilionárias da estatal. As estimativas apontam necessidade de mais de 70 plataformas até 2030, levando em conta o desenvolvimento do pré-sal e da produção dos volumes excedentes da cessão onerosa, empreitada que a Petrobras recebeu em junho do governo. Só aí são cerca de 10 bilhões de barris óleo a serem tirados do mar.
Segundo a estatal, existem 19 plataformas contratadas e 14 em processo de contratação. Três entraram em operação neste ano. Dados do Sinaval mostram que foram entregues seis plataformas em 2013, construídas total ou parcialmente no país. No momento, há 14 delas sendo fabricadas em estaleiros nacionais – das quais duas tiveram seus cascos convertidos na Ásia.
Por conta da demanda da Petrobras, vários estaleiros estão sendo criados no país. O Rio Tietê, em Araçatuba (SP), que está construindo os comboios hidroviários, é um deles. A previsão é entregar os três primeiros comboios hidroviários neste ano. Os demais serão entregues entre 2015 e 2017. Outros nascidos em função da estatal são o Estaleiro Atlântico Sul (EAS) e o Vard Promar, em Pernambuco; o EBR – Estaleiros do Brasil, no Rio Grande do Sul; o Enseada, na Bahia; e o Jurong Aracruz, no Espírito Santo.
Há dois outros em implantação, segundo o Sinaval: o OSX, no Rio, e o CMO Offshor e, em Santa Catarina. O EAS, além de ter recebido encomendas de 22 petroleiros para o Promef, tem em carteira sete sondas de perfuração. O Vard Promar, além de construir navios para a Transpetro, se prepara para produzir barcos de apoio, seu maior foco. Começou a operar em meados de 2013. O EBR fará, a partir deste ano, a construção e a integração de módulos para uma plataforma.
O Enseada, no Rio, onde opera o estaleiro Inhaúma, toca a conversão de cascos de navios em plataforma. Já em sua instalação na Bahia fará seis sondas de perfuração neste ano. O Jurong Aracruz, que deve estar concluído em 2015, também tem encomendas de sete sondas. As sondas ainda estão na carteira de outros dois estaleiros: o Brasfels, de Angra dos Reis (RJ), e do Estaleiro Rio Grande (ERG), no Rio Grande do Sul. O prazo para a conclusão do conjunto desses equipamentos é de 2016 a 2020.
A Petrobras também puxa o setor por outras cordas: o Programa de Renovação da Frota de Embarcações de Apoio Marítimo (Prorefam) e o Empresas Brasileiras de Navegação (EBN). O primeiro foi criado em 2008 e prevê a contratação de 146 embarcações, em sete rodadas. Em maio, a estatal aprovou a contratação de 23 barcos de apoio, integrantes da sexta rodada.
Essas contratações aprovadas, segundo a estatal, somam um investimento de cerca de US$ 1,7 bilhão para a fase de construção, a ser feito pelos afretadores. Até o fim de outubro, a empresa assina os contratos dos barcos da sétima rodada, lançada em março. No total, foram contratadas mais de 100 embarcações em 11 estaleiros. O investimento do programa é de US$ 11,2 bilhões e os barcos têm até quatro anos para ficar prontos a partir da assinatura do contrato.
O EBN, por sua vez, anda devagar. Trata-se de uma iniciativa para a Petrobras afretar, por 15 anos, embarcações construídas no país e operadas por empresas brasileiras, como forma de reduzir os gastos com frete marítimo. Mas dos 39 navios que compõem a iniciativa – e que devem ser entregues até 2017 -, só um ficou pronto. Outros dois estão em construção e os demais, sendo negociados entre armadores, estaleiros e agentes financeiros.
Para Rocha, os estaleiros nacionais têm a missão de oferecer capacidade estratégica para as necessidades do país, mas isso não significa que poderão atender a todas as demandas da Petrobras,“que realiza o maior programa de investimentos em produção de petróleo offshore do mundo”. E defende parceria internacional. Segundo ele, a construção naval brasileira é competitiva em itens como plataformas e módulos de serviço, mas esbarra nos incentivos fiscais concedidos por estaleiros da Ásia, que provocam distorção para análise do preço final de navios.
Ainda assim, Rocha aponta o aumento da produtividade e a capacitação de pessoal como os grandes desafios da indústria. Para superar essas limitações, existe um esforço da iniciativa privada e do governo para ampliar as vagas no ensino técnico profissionalizante. Os estaleiros, por sua vez, fazem sua lição de casa investindo na formação de pessoal.
Petroleiros, plataformas, sondas e barcos de apoio têm outra coisa em comum além de estimular a atividade dos estaleiros nacionais. Precisam cumprir índices de conteúdo local que variam de 50% a 70%, em média. E é a demanda, diz o presidente da Associação Brasileira das Empresas de Construção Naval e Offshore (Abenav), Augusto Mendonça, o principal incentivador dessa cadeia de fornecedores de bens e serviços.
“Ela garante os investimentos, e a competitividade virá pelo volume e pela atração de novas empresas para o setor”, aposta Mendonça. Mas há gargalos a ser vencidos, como escassez de mão de obra qualificada e deficiência no suprimento interno de alguns itens, considerados críticos, como válvulas, equipamentos eletrônicos, motores de grande potência, turbinas a gás, entre outros.
Pelos cálculos da Abenav, o setor naval e offshore e sua cadeia de fornecedores são responsáveis por cerca de 1 milhão de empregos diretos e indiretos. A previsão é de crescimento, uma vez que vários estaleiros estão começando ou prestes a começar a operar. “Vencendo a curva de aprendizado, a indústria deve, nos dois próximos anos, dobrar sua capacidade de produção”, diz Mendonça.
Para ele, permanece a busca por competitividade em prazo, qualidade e preço visando não só a perpetuação do setor como para ganhar o mercado internacional. Para chegar lá é preciso investir em tecnologia, inovação, boas condições de infraestrutura e o batido tópico da qualificação de mão de obra, itens para os quais existem iniciativas em curso, segundo ele.
Mendonça afirma que novas áreas de exploração significam mais contratações de plataformas de produção, sondas de perfuração e embarcações de apoio marítimo. Nesse contexto, o leilão do megacampo de Libra, o primeiro do pré-sal arrematado em outubro pela Petrobras em parceria com Shell, Total e duas petroleiras chinesas, a CNOOC e a CNPC, ilustra bem o cenário.
Somente para Libra, diz Mendonça, serão necessários 15 plataformas de produção e 50 barcos de apoio, movimentando cerca de US$ 30 bilhões. Ele afirma que nesses quase 15 anos de ressurgimento da indústria naval, o Brasil pode se equiparar, em termos de competitividade, em alguns setores, com países que são considerados parâmetros no áreas, como Noruega e Cingapura. “Este avanço, em um pouco mais de uma década, é bem mais acelerado do que o ocorrido em países como Coreia e Japão.”
Na visão da chefe do Departamento de Gás, Petróleo e Cadeia Produtiva do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Priscila Branquinho, a indústria naval brasileira ainda tropeça em problemas de gestão, especialmente na parte de processos produtivos. E nesse ponto, a participação de sócios estrangeiros – todos japoneses – como o grupo IHI no EAS, o KHI no Enseada, o Toyo no EBR e o MHI no Engevix, ajuda a acelerar o ganho de conhecimento.
“Mais que a tecnologia, o comprometimento dos sócios traz avanços em conhecimento e processos de gestão, elevando a produtividade”, diz Priscila. E isso acaba fomentando a cadeia produtiva como um todo.
Para o gerente do Departamento de Gás, Petróleo e Cadeia Produtiva do BNDES, Luiz Marcelo Martins Almeida, a indústria no Brasil deveria fugir de commodities do setor como os petroleiros, e apostar em barcos de apoio offshore. “Eles exigem mais tecnologia embarcada e uma mão de obra mais especializada, de alto nível.”
Fonte: Valor Econômico – Simone Goldberg | Para o Valor, do Rio