O cenário é crítico e delicado, além de política e economicamente sensível. Para um país onde o setor petróleo responde por cerca de 10% do PIB, uma política assertiva de desenvolvimento industrial pode influenciar positivamente a vida de trabalhadores e empregadores.
O fracasso dessa mesma política tem consequências devastadoras também para todos os lados. Ninguém ganha com seu tropeço. É preciso encontrar o caminho do meio o mais rápido possível.
O governo federal precisa acertar o ponto no seu discurso e dar sinais claros do que pretende fazer com a política de conteúdo local no país. Os sinais trocados atualmente têm causado pânico e gerado diversas interpretações para um mesmo discurso.
Levantamentos preliminares feitos por especialistas do setor projetam que o volume total de multas pelo não cumprimento das exigências de conteúdo local nos contratos de exploração em vigor deva girar na casa dos bilhões de reais.
Os números não são oficiais, mas indicam a dimensão do problema que está por vir e que afetará prioritariamente a Petrobras, operadora de 122 blocos das 348 áreas sob concessão no momento. Somente com as multas que estão para ser emitidas, as projeções apontam um montante total de R$ 2 bilhões, em relação a cerca de R$ 300 milhões já aplicados até o momento a 17 petroleiras.
No longo prazo, estimativas mais pessimistas extrapolam o montante das multas na fase de exploração para algo ao redor de R$ 15 bilhões. Se computadas as penalizações por vir com o não cumprimento na fase de produção, especula-se hoje que as cifras podem ser até dez vezes maiores, tendo em vista o volume de investimentos envolvidos, estimam executivos do setor. Na lista de projetos que ameaçam engrossar essa lista estão os sistemas de produção do cluster do pré-sal da Bacia de Santos, onde a Petrobras já admite atrasos na construção dos FPSOs e remaneja algumas das obras para o exterior.
Apesar das projeções que tomam cada vez mais força no mercado, o Ministério de Minas e Energia não tem um número oficial. Esse dado, segundo o MME, está sendo calculado pela ANP, que, procurada pela Brasil Energia Petróleo, preferiu não comentar sobre o tema. Informalmente, fontes do órgão regulador admitem a perspectiva de multas superando a casa dos milhões de reais.
A política de conteúdo nacional existe desde a primeira rodada de licitações e é utilizada como um dos fatores nas rodadas. Desde 2005, foram estabelecidos percentuais de compromisso mínimo, que passaram a ser discriminados nos editais e nos contratos de concessão firmados com as petroleiras, e criada a polêmica cartilha de 64 itens com exigências mínimas de conteúdo local.
Necessidade de mudanças
Uma parte da indústria reconhece que o conteúdo local é fundamental para o desenvolvimento da capacidade produtiva no país. Essa mesma parcela também defende a implantação de mudanças. O argumento é que o modelo vigente foi concebido levando em consideração obrigações factíveis na ocasião, que não se enquadram no cenário atual do setor no Brasil e no mundo.
Afora isso, argumentam também que os investimentos da indústria cresceram, de 2005 até hoje, sete vezes, enquanto a indústria local não acompanhou esse movimento.
“O modelo já era desafiador para aquela época. Todos concordamos com o conteúdo local. O que temos de entender é qual é a atual realidade do mercado e como se coloca uma proposta que possa criar valor para o país dentro do que é possível ser feito”, argumenta Antônio Guimarães, gerente executivo de E&P do IBP.
Para o instituto e também para a Onip, o modelo punitivo se mostra inadequado, sobretudo agora. Diante do momento, as duas entidades defendem que um modelo de incentivo ao crescimento da indústria traria muito mais retorno ao país.
Alinhadas nessa visão, as duas entidades pregam a não utilização do conteúdo local como fator de pontuação para os próximos leilões, alegando que a metodologia não agrega valor real ao país. O ideal no caso das áreas de concessão, segundo as instituições, seria utilizar o mesmo critério do modelo de partilha, onde o percentual é fixo e não interfere no critério de julgamento das propostas.
Oficialmente, o governo, através do Ministério de Minas e Energia, reconhece que a política de conteúdo nacional carece de ajustes, conforme antecipado com exclusividade à Brasil Energia Petróleo, e já trabalha na sua revisão, mas sem admitir nenhum erro na condução do modelo ou na estratégia adotada. De pronto, terão de ser equacionados de uma só vez três gargalos: o dos projetos com auditoria de fiscalização em curso, nos quais se averígua a aplicabilidade ou não de sanções, o das áreas já concedidas e que ainda têm investimentos por fazer e todo o cenário futuro dos próximos leilões, o que inclui a 13a rodada.
A tarefa demandará habilidade e medidas muito bem equilibradas. Se forem solucionados apenas entraves com vistas às novas rodadas, há o risco de que o passivo das áreas já concedidas comprometa a aposta das petroleiras nos futuros leilões. Outra preocupação é que os percentuais de conteúdo local possam levar à inviabilidade econômica de alguns projetos.
Com o ministro de Minas e Energia, Eduardo Braga, tendo aberto a questão ao diálogo, dando sinais de que pode haver luz no fim do túnel, a dificuldade continua sendo a presidente Dilma Rousseff, que, na visão de representantes da indústria e do governo, se intitula a “mãe” do conteúdo nacional.
A presidente repreendeu alguns de seus colaboradores durante o voo de volta do evento realizado em maio no estaleiro EAS, em Pernambuco, afirmando que conteúdo nacional é sagrado. E também repreendeu membros do governo após o evento realizado no estaleiro.
A mudança também não é consenso na indústria. Na avaliação da Abimaq, a discussão em torno do aprimoramento da política de conteúdo nacional necessita ainda de maior aprofundamento. Para a entidade, mais importante que discutir pontos específicos da política de conteúdo nacional é estabelecer uma política industrial sólida, com ações efetivas que permitam ao fornecedor nacional vender seus equipamentos com competitividade no Brasil e no exterior.
“Temos de levar em consideração os pontos de vista de todos os envolvidos nessa questão e verificar o que tira de fato a competitividade da indústria brasileira. Precisamos elaborar uma proposta que atenda minimamente a todo o mundo”, defende Alberto Machado, diretor de Petróleo, Gás, Bioenergia e Petroquímica da associação.
Não há como desprezar o peso dessas multas e muito menos o fato de o programa não estar conseguindo assegurar alguns resultados práticos. O programa, ressaltam especialistas, tem por objetivo alavancar a indústria nacional e não arrecadar recursos com o pagamento de multas.
Outra questão tida como delicada é que – diante de montantes desse vulto – as petroleiras terão, possivelmente, de prever isso em seus balanços, em algum momento, o que em certos casos promete ter um impacto expressivo.
Apesar do quadro atual, o diretor-presidente da Onip, Eloi Fernandez y Fernandez, ressalta que os problemas de conteúdo nacional vividos hoje na indústria nada têm a ver com a operação Lava Jato. O setor, na opinião do executivo, enfrentaria dificuldades nesse segmento mesmo sem os escândalos de corrupção. “A Lava Jato só fez piorar um cenário que já seria complicado”, opina o executivo.
Na indústria, prevalece a visão de que alguns percentuais de conteúdo nacional são impossíveis de ser cumpridos e de que alguns números divulgados de conteúdo nacional realizado não condizem com a realidade. A visão é que a indústria brasileira é capaz de capturar um valor médio de 30% dos investimentos programados para ser feitos nos próximos anos.
Estágio do trabalho
No governo, o trabalho de revisão das normas de conteúdo nacional está sendo executado por um grupo formado por técnicos e executivos do MME e da ANP, que se revezam em um contingente de cinco a dez pessoas. A tarefa incluirá, em alguns momentos, a participação de técnicos do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (Mdic).
Cerca de 60% do dever de casa já foi concluído e a expectativa é de que, entre o fim de junho e o início de julho, o grupo formate uma proposta para ser apresentada ao ministro e, posteriormente, à presidente Dilma Rousseff. O trabalho está sendo feito com foco na 13a rodada, concorrência que, já se sabe, não terá grandes alterações, como antecipou o ministro Eduardo Braga.
A intenção do MME é tentar concluir o processo de revisão ainda em 2015. O secretário de Petróleo do MME, Marco Antônio Martins Almeida, não quis antecipar os primeiros pontos em estudo e afirma que o trabalho não contemplará nenhuma grande questão a ser resolvida.
“É preciso deixar claro que não haverá nenhum relaxamento das obrigações contratuais de conteúdo local. O que estamos propondo e iremos fazer é um processo de aprimoramento da política, pois precisamos resolver algumas situações de imperfeição”, afirma o secretário.
Uma das possíveis soluções ao impasse das multas, segundo defesa da indústria, poderia vir através da regulamentação do waiver, instrumento previsto nos contratos de concessão. O instrumento permite a dispensa da obrigação de conteúdo nacional quando comprovado à ANP que não havia condição de atendimento em relação a preço, prazo e tecnologia.
IBP sugere foco
Seguindo uma linha do desenvolvimento com sustentabilidade, o estudo do IBP teve como pano de fundo o valor socioeconômico que o conteúdo local pode agregar ao Brasil nos principais segmentos da indústria do petróleo, objetivando apontar as áreas de maior representatividade. Desenvolvido em parceria com a consultoria Bain & Company, o trabalho identificou sete segmentos prioritários: projetos e fabricação de módulos e topside, equipamentos subsea, serviços de instalação de subsea, perfuração e completação de poços de alta tecnologia, máquinas e equipamentos de alta tecnologia, máquinas e equipamentos de média tecnologia e construção de embarcações de apoio marítimo.
A premissa foi elencar os segmentos que não só criam valor para o país, gerando empregos e renda e investimento em P&D, mas que também sejam verdadeiramente competitivos no mercado global. A proposta sugerida pelo IBP é que, em vez de manter a cartilha de 64 itens com exigências mínimas de conteúdo nacional, atualmente em vigor, a política de compromisso local seja direcionada a essas áreas.
“Nosso estudo tenta responder quais são as vocações do setor petróleo brasileiro e onde o país deveria focar para verdadeiramente captar valor. Nossa expectativa é que o país possa capturar cerca de 80% do valor socioeconômico, caso o conteúdo local seja direcionado a esses sete segmentos”, afirma Antônio Guimarães, secretário-executivo de E&P do IBP.
Lançado em maio, o estudo consumiu oito meses de trabalho e foi todo elaborado com base na questão do foco. Cerca de dez pessoas participaram de modo direto da elaboração do material, que começará a ser apresentado a representantes do governo a partir de junho.
A análise levou em consideração um total de nove segmentos e mais 22 subsegmentos. Ao longo do trabalho foram entrevistados mais de 70 executivos do governo, petroleiras, fornecedores, certificadoras e associações de classe.
Associada à questão do foco, o IBP sugere a simplificação da tabela de 64 itens com exigência de conteúdo local. O estudo propõe também a retirada do conteúdo local como fator de bid e a adoção de um percentual fixo, a exemplo do sistema já adotado nos leilões regidos sob o modelo de partilha, além da adoção do mecanismo de incentivos e compensações que possa ser utilizado antes das penalizações.
Além dessas três propostas principais, o IBP defende também a regulamentação do instrumento de waiver, mecanismo que permite a isenção de obrigação de cumprimento do conteúdo nacional em caso de incapacidade de execução por força do mercado. O pleito inclui ainda o reequilíbrio dos pesos dos itens estabelecidos nos compromissos, tendo em vista possíveis alterações do setor.
O presidente do IBP, Jorge Camargo, argumenta que é importante reduzir as incertezas e aperfeiçoar o modelo tendo em vista o novo cenário.
“Estamos propondo o aperfeiçoamento e a simplificação da política de conteúdo local para esse novo momento, esse novo ciclo que o Brasil vive. Com menos incerteza, há mais investimento, e com mais incerteza, há menos investimento. Isso é fato”, afirma Camargo.
O estudo será apresentado ao MME, ANP e Mdic, ao longo de junho. A Abimaq e a Abemi já solicitaram que o IBP apresente o trabalho a seus associados. O encontro ainda não tem data marcada, mas a previsão é que isso seja feito ao longo deste mês.
“A questão do foco tem de ser aperfeiçoada para os níveis mais baixos da cadeia produtiva. É preciso discutir mais a fundo o trabalho, levando em consideração também o ponto de vista de quem fabrica”, argumenta Alberto Machado, diretor da Abimaq, entidade que é contra o fim da cartilha de 64 itens. (C.S.)
Onip aposta no conceito de créditos
Estudado ao longo de mais de um ano, o trabalho da Onip foi desenvolvido com base no conceito de Certificado de Investimento Local (CIL). A metodologia propõe que o concessionário possa utilizar créditos para abater seus compromissos de conteúdo local com a agência.
Na prática, a instituição propõe a ampliação do conceito de compras locais, que passaria a incorporar também os investimentos feitos na indústria nacional. Na avaliação da Onip, a proposta elaborada reforça o conteúdo local em relação à geração de emprego e renda e estimula o investimento no país, tendo como foco o aumento da produtividade e preservando as premissas do conceito de conteúdo local.
A lista de projetos elegíveis a crédito ficaria a cargo do governo, função que, para a Onip, poderia ser muito bem desenvolvida pelo BNDES. Entre os investimentos passíveis de ser contabilizados, a instituição enumera, por exemplo, investimentos em atualização/modernização do parque industrial, em novas plantas para fabricação de itens não disponíveis no mercado brasileiro e em capacitação de mão de obra e no aumento da produtividade.
Pelas regras propostas, o benefício seria concedido aos investidores dos projetos previamente elegíveis pelo governo e, posteriormente, transferido aos concessionários para apresentação à ANP, na forma de emissão de certificado. Dessa forma, defende a Onip, o governo teria maior flexibilidade e poderia vir a estimular áreas de maior carência de investimentos.
“Nossa proposta tem um jogo de ganha-ganha e funciona como um instrumento de política industrial. Um fabricante poderia, por exemplo, contabilizar como investimento local não só a fabricação de uma turbina, como também todo o investimento feito na ampliação de seu parque”, exemplifica o diretor-presidente da Onip, Eloi Fernandez y Fernandez, ressaltando que o benefício só se aplicaria a investimentos já aplicados.
Para garantir segurança e transparência, a Onip propõe que o mecanismo seja feito de forma pública, em ambiente eletrônico, a exemplo do que já ocorre com títulos públicos e privados. A metodologia de formulação da emissão e negociação dos títulos eletrônicos foi desenvolvida em parceria com a Cetip.
Com base em consultas a escritórios de advocacia, a Onip assegura que a aplicação do modelo não demandaria mudanças nos contratos de concessão em vigor. A única demanda seria a publicação de uma portaria, autorizando a aceitação de certificados de investimentos locais para abater os compromissos de conteúdo local. Tendo em vista o volume das multas, os organizadores do estudo defendem que a proposta seja retroativa por um determinado período, que seria estabelecido pelo governo.
A proposta da Onip foi apresentada ao MME, já na gestão do ministro Eduardo Braga, ao Mdic, BNDES, aos ministérios da Fazenda e do Planejamento, à Petrobras, PPSA, IBP, ANP e toda a rede de fornecedores. O tempo necessário à implantação do modelo seria de quatro meses a seis meses. (C.S.)