Promover produção nacional não significa favorecer gestões obsoletas e tecnologia atrasada.
A queda dos preços das commodities, em particular a do petróleo em 2014, a crise política interna e os desdobramentos da Operação Lava Jato são alguns dos fatores com impacto direto na recessão que se abate sobre a economia do Brasil.
No setor de petróleo e gás, os ataques espetaculosos da Lava Jato lançaram suspeita sobre a Petrobras, como se a estatal estivesse toda contaminada pela corrupção. A empresa, já premida por dificuldades financeiras, retraiu suas atividades, o que complicou a vida de empresas do seu ciclo produtivo, a indústria para-petroleira.
Neste cenário crítico, a política de conteúdo local precisa ser defendida com firmeza e flexibilidade, para se evitar mais prejuízos, seja por recuo na proteção da indústria brasileira, seja por exigências que terminam reservando mercado para empresas tecnologicamente defasadas.
A cláusula de conteúdo local surgiu na Primeira Rodada de Licitações de Blocos Exploratórios da ANP, em 1999, e visava desenvolver e diversificar a indústria para-petroleira local, preocupação que aumentou após a quebra do monopólio da Petrobras e a criação da ANP.
Em todas as rodadas de licitação, a agência incluiu esta cláusula nos contratos de concessão. Até a 4ª rodada, em 2002, os percentuais de conteúdo local eram apenas declaratórios e serviam como pontuação no certame. A partir de 2003, com a 5ª rodada, tornaram-se obrigatórios e diferenciados para bens e serviços em blocos terrestres, em águas rasas e águas profundas.
Ajustes mais rigorosos foram feitos nas rodadas seguintes para certificar o cumprimento desta regra, ainda mais após a descoberta do pré-sal, a implantação do regime de partilha da produção e a criação da empresa 100% estatal, a Pré-Sal Petróleo SA (PPSA), para gerir esse novo modelo contratual.
Os resultados positivos vieram. A participação da indústria nacional nos investimentos do setor saltou de 57% em 2003 para 75% em 2009, ou US$ 14,2 bilhões a mais em serviços e bens contratados de empresas brasileiras e a geração de 640 mil postos de trabalho.
Enfrentando uma desindustrialização precoce e grave, o país não pode dispensar uma política de conteúdo local no setor de petróleo e gás, devendo aprimorá-la com o exame das controvérsias em pauta.
Uma delas levanta que as concessionárias preferem importar alguns bens e serviços por terem melhor qualidade, preço e prazo de entrega que os congêneres nacionais, mesmo arcando com multas pesadas que totalizaram R$ 315 milhões entre 2013 e 2015, segundo a ANP. Só a Petrobras respondeu por 42% das multas aplicadas em 2014.
As cláusulas de conteúdo local dos contratos da ANP sempre afirmaram a necessária preferência por fornecedores brasileiros cujas ofertas apresentassem preço, prazo de entrega e qualidade equivalentes aos estrangeiros. A defesa do produtor nacional deve ser feita, mas não pode se transformar em prática que favoreça gestões obsoletas e empresas de tecnologia atrasada.
Tem-se levantado também a inconveniência de se manter percentuais obrigatórios para quase 90 itens. Não seria o caso de substituir esses itens por número bem menor de bens, em que já temos capacidade mínima de competir ou possibilidades de fazê-lo? Ou ainda de realçar não bens, mas segmentos industriais, como máquinas, engenharia de projetos, infraestrutura e outros?
Discute-se ainda a opção por um índice global de conteúdo local, que incluísse bens e serviços. Dita alternativa pode levar à distorção de se atingir um determinado índice “global” sem se incorporar nada de máquinas e equipamentos.
Há os que criticam o modelo em vigor como “indústria de multas”. Embora haja exagero nessa formulação, a questão pode nos remeter a outro desafio, o de adotar uma política de conteúdo local que não abrigue a ideia de multa, mas a de incentivo, como procedem alguns países como a Noruega e a China. A empresa que atingir metas determinadas de conteúdo local é premiada com desonerações, subsídios e regimes aduaneiros vantajosos. Com base nesse expediente, além de outros, esses dois países criaram grande indústria local para-petroleira.
No momento está em curso questão importante. A ANP abriu uma consulta pública para discutir uma solicitação da Petrobras para liberação de todas as exigências de conteúdo local para um navio-plataforma para o campo de Libra, no pré-sal da Bacia de Santos. Esse pedido foi apresentado pela Petrobras em 30 de agosto de 2016 e foi marcada uma audiência pública sobre o assunto para 18 de abril de 2017.
Na argumentação da Petrobras, aparece a afirmação de que “a plataforma só será viável economicamente se o consórcio for liberado das obrigações” de conteúdo local. É o conhecido pedido de “waiver”, ou da desistência em cobrar o que é de direito. A diretora Solange Guedes, de Exploração e Produção, da antiga equipe da Petrobras, afirmou à imprensa que o consórcio da área de Libra precisa ser liberado completamente desta obrigação e que, referindo-se ao projeto de Libra, “no limite, sem “waiver”, não haverá projeto”! A Petrobras já solicitou também pedido de “waiver” para o navio-plataforma de Sépia, na cessão onerosa da Bacia de Santos.
Agiu com prudência a ANP ao não deliberar de motu próprio sobre tema tão delicado e abrir consulta pública seguida de audiência. O “waiver” para este caso, como para outros, criaria um precedente perigoso para a política de conteúdo local e para o respeito aos contratos firmados.
Por outro lado, correr-se o risco de truncar o projeto de Libra é preço que não se deve pagar. Em casos como tais, espera-se que a consulta da ANP ilumine alguma solução, como a prorrogação do prazo para cumprimento da cláusula, mas mantendo-a, inclusive porque, revogá-la, não só enfraqueceria a política de conteúdo local, como colocaria em questão a regulação da ANP, que pode ser questionada juridicamente.