A indústria naval brasileira vive um momento de buscar forças para garantir sucesso nas frentes de diversificação nas quais vêm depositando suas fichas nos últimos sete anos. Desde 2014, com a escassez de projetos do setor de petróleo e gás e com a flexibilização das políticas de conteúdo local, grandes estaleiros demitiram milhares de trabalhadores. Com efetivos menores aos dos tempos de aquecimento da atividade, passaram a buscar serviços que garantam, ao menos, a manutenção de suas instalações. O cenário é de poucas consultas e demandas pequenas.
Apesar disso, a indústria brasileira de navipeças almeja um horizonte melhor após todos esses anos tendo que se adaptar à falta de encomendas nos estaleiros nacionais e à flexibilização da política de conteúdo local. As empresas integrantes da câmara setorial de equipamentos navais e offshore da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (CSENO/Abimaq) veem como potenciais demandas para os próximos anos projetos de eólicas offshore, refinarias modulares, construção de módulos de FPSOs (unidades flutuantes de produção, armazenamento e transferência) e projetos de embarcações militares, como as fragatas e o navio de apoio Antártico (NApAnt).
Na chamada “logística reversa”, esse grupo com cerca de 80 empresas associadas está atento a projetos de extensão de vida útil e de desmantelamento de plataformas. “Entendemos que estes serão os segmentos mais demandantes nos próximos anos”, aponta o presidente da CSENO/Abimaq, Bruno Galhardo. Existe um potencial de aproximadamente 74 plataformas para serem desmanteladas, sendo que em torno de 20 já iniciarão o processo, em 2021, o que faz com que a indústria espere uma atenção especial para o tema este ano.
Galhardo observa que o mercado de construção se concentrou em atividades de construção de módulos, integração e comissionamento, já que a maioria dos projetos teve sua efetiva construção na China. No entanto, ele lamenta que até mesmo a fase de integração hoje venha sendo executada por estaleiros estrangeiros. O alento é que praticamente um terço de todos os FPSOs operando no mundo está no Brasil. Para Galhardo, esse dado mostra a força e a relevância do país nesse mercado. “A perspectiva é que os investimentos sejam retardados, mas não cancelados, o que significa que o crescimento da atividade exploratória continuará nos próximos anos, haja vista a expectativa de mais de 50 FPSOs nos próximos 10 a 15 anos que operarão no Brasil”, analisa.
A câmara setorial identifica consultas de estaleiros que estão construindo módulos no Brasil para envio à Ásia para integração junto aos FPSOs, além de consultas para projetos de construção das fragatas classe Tamandaré e alguns projetos de construção de barcos de apoio, como rebocadores. No entanto, a maior parte das consultas diz respeito ao fornecimento de peças e serviços às unidades existentes e que necessitam de manutenção. “Estas vendas são as que ‘sustentam’ as empresas nos últimos anos”, resume Galhardo.
Um novo mercado que se abre, segundo Galhardo, é de projetos de eólicas offshore, que poderá demandar a conversão de embarcações para suporte a essa atividade. “Temos contato com os grandes fomentadores deste segmento no Brasil e a perspectiva é excelente para os próximos anos”, acrescenta.
Galhardo diz que o mercado de construção naval no Brasil vinha cambaleando devido à falta de leilões de campos de exploração de petróleo por um longo período, mas via sinais de recuperação nos últimos anos com a vinda de grandes IOCs (International Oil Companies) e crescente investimento da Petrobras em exploração. No entanto, o setor foi fortemente atingido pela pandemia de Covid-19 e a redução no preço do barril do petróleo. Os membros da CSENO veem a revitalização de campos maduros e investimentos na aquisição e operação de plataformas antigas como uma grande oportunidade, pois as operadoras que atuam nesse segmento precisarão investir em manutenção para garantir a integridade dos ativos. Galhardo revela que um dos principais objetivos dos fornecedores este ano é aumentar a aproximação maior com esses grandes players.
A CSENO está atenta às questões relacionadas ao descomissionamento, pois parte dos associados vai se beneficiar com os serviços que esta atividade demandará. De acordo com a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), o descomissionamento é responsabilidade exclusiva dos operadores, que são livres para contratar as empresas que executarão tais serviços, desde que os compromissos assumidos no programa de descomissionamento sejam realizados conforme as normas vigentes. Dessa forma, a indústria avalia que seria péssimo para os estaleiros nacionais se as plataformas fossem enviadas para serem desmanteladas fora do país.
Para o presidente da CSENO, não existem garantias de que essas plataformas serão desmanteladas no Brasil. “Esse processo exige que se obedeçam a critérios internacionais e atualmente não existem estaleiros nacionais certificados para tal. Sem falar que ainda se discutem temas como destinação de sucatas e como resolver o impacto ambiental do coral-sol”, comenta Galhardo. Ele lembra que o tema vem sendo discutido pelo comitê técnico da Sociedade Brasileira de Engenharia Naval (Sobena), que realiza seminários anuais reunindo representantes da indústria, Marinha, classificadoras, operadores e demais agentes envolvidos, para que a discussão seja a mais plural possível.
Diante das poucas alternativas, os fornecedores estão atentos às consultas a fim de identificar quais são os segmentos que dão sinais de voltar a demandar projetos. Com relação a projetos novos, as consultas são feitas pelos estaleiros que estão construindo módulos no Brasil para envio à Ásia para integração junto aos FPSOs, além de consultas para o projeto de construção das fragatas classe Tamandaré e alguns projetos de construção de barcos de apoio, como rebocadores.
Um comitê da CSENO/Abimaq se reuniu para estudar o PL 4.199/2020 (BR do Mar). E emitiu propostas de emendas ao texto base, sugerindo modificações no que os fornecedores consideram lesivo à indústria nacional. Num primeiro momento, houve preocupação com a fala do governo de que é um projeto que estimula a cabotagem unicamente, sem levar em contrapartida os impactos na indústria de construção naval no país. “Entendemos que todo projeto deve ser analisado sob todos os prismas e a discussão precisa ser bem mais ampla”, diz Galhardo.
Um dos pleitos foi a inclusão no texto de um dispositivo que facilitaria o acesso ao Fundo da Marinha Mercante (FMM) para fabricantes de módulos, conjuntos, subconjuntos e equipamentos, além do próprio estaleiro. “Defendemos o fomento à cabotagem, sabemos da importância dela para o Brasil. Mas entendemos que a construção naval em si corresponde a aproximadamente 5% do custo total [do negócio]”, destaca Galhardo. Ele cita que existem muitos outros custos, como bunker e custos portuários, que devem ser debatidos antes de se imaginar que a construção das embarcações no país seja o grande vilão dessa história.
Outro movimento de aproximação da indústria de navipeças é com os agentes envolvidos com os projetos de meios navais da Marinha. Membros da CSENO vêm dialogando com as empresas atuantes nesse segmento, com forte atuação na Força Naval e na sociedade de propósito específico (SPE) Águas Azuis na pesquisa por fornecedores locais capacitados ao atendimento de algumas demandas do projeto. “Nossa interação com a Marinha vem sendo bem positiva e regularmente nos reunimos com o almirantado para expressar os anseios da indústria nacional”, conta Galhardo.
A expectativa dos fornecedores é que 2021 seja importante para as definições técnicas do projeto das fragatas. O corte da primeira chapa está previsto para ocorrer em 2022, quando as compras começarão a se concretizar. Com relação ao navio polar (NApAnt), o foco está no contato com os três consórcios finalistas. Tão logo a Marinha decida o vencedor, o objetivo da indústria nacional é tentar replicar a interação hoje alcançada com a SPE Águas Azuis.
A CSENO atua de forma conjunta com o conselho de óleo e gás da Abimaq com o intuito de defender os interesses de seus associados. Todos os temas sensíveis à indústria, como BR do Mar, conteúdo local, TAC (termo de ajustamento de conduta) e Repetro, entre outros, são discutidos e aprofundados nas reuniões dos comitês internos. Geralmente, sugestões de mudanças aos textos base, visando a defesa dos interesses nacionais, são encaminhadas pela presidência da instituição aos diversos órgãos do governo federal, estadual e/ou municipal. A Abimaq tem forte atuação junto ao Congresso — a frente parlamentar de máquinas e equipamentos é representativa.
Para Galhardo, a flexibilização de conteúdo local traz prejuízos à indústria nacional, pois deixa latente que o Brasil não é competitivo, por diversos aspectos. Ele defende uma política de conteúdo local que seja implementada com início e fim pré-determinados. Para o presidente da CSENO, outras ações poderiam ser tomadas para que, após finda essa fase, a indústria não precise mais de conteúdo local para se fazer presente e competitiva nacional e internacionalmente.
“Faz-se necessária uma política industrial séria para o país. A reforma tributária seria o maior dos desafios a ser vencido para o fortalecimento da indústria nacional. Com certeza, temos atores preparados para desenvolver qualquer projeto no Brasil, como empresas de engenharia, epcistas, estaleiros, entre outros. Precisamos previsibilidade em termos de carteira de projetos, para que não percamos mão de obra especializada para outros segmentos”, afirma Galhardo.
No polo naval do Rio de Janeiro, o cenário é de estaleiros sem encomendas, em situação financeira complicada e falta de perspectivas. O Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro (Sindimetal-Rio) acompanha as negociações com estaleiros que, durante a crise, entraram em recuperação judicial. A previsão é que este ano ocorra uma nova assembleia com credores e representantes do Estaleiro Ilha S/A (Eisa), buscando parcerias para tentar retomar os trabalhos em navios e embarcações de apoio que não foram concluídos. No Mauá, em Niterói (RJ), também existem navios inacabados que pertenceram à Transpetro e que seguem sem uma solução encaminhada.
O Sindimetal-Rio espera que o governo dê o devido valor à indústria naval de modo que permita que os novos projetos não sejam todos construídos no exterior. Para isso, o sindicato considera que as políticas do BR do Mar devem ser construídas de modo que não enterre o conteúdo local. “No Rio de Janeiro, como em todo o Brasil, está bem difícil. E, como as perspectivas não são boas com a aprovação do BR do Mar, será praticamente fechar o último prego do caixão”, diz o presidente do sindicato, Jesus Cardoso.
Para o Sindimetal-Rio, ainda existe algum fio de esperança no polo de Itaguaí, onde estão a Nuclep e o complexo da Marinha em que estão sendo construídas as quatro unidades do Programa de Desenvolvimento de Submarinos (Prosub). “Esperamos que tenhamos vários anos de vida em Itaguaí, com o Prosub entregando submarinos convencionais e entrando [futuramente] no submarino de propulsão nuclear, o que daria alguns anos de trabalho pela frente”, torce Cardoso. Ele acredita que, por se tratar de um projeto estratégico, o governo deve garantir orçamento para esse programa.
Entre 2013 e 2014, auge das construções recentes, o Sindimetal-Rio estima que havia aproximadamente 7,8 mil trabalhadores no estaleiro Inhaúma, 3,5 mil no Eisa, mil trabalhadores no Rionave/Caneco e quatro mil no canteiro da Nuclep. Atualmente, o sindicato calcula que a Itaguaí Construções Navais (ICN) conte com 1,5 mil trabalhadores.
“Para mais de 90% dos trabalhadores em 2014, as portas de trabalho se fecharam e não temos perspectivas de quando isso vai melhorar e avançar. É muito desalentador o que temos para o futuro. Até porque não temos uma política empresarial do governo”, afirma. Cardoso acrescenta que a dinâmica dos estaleiros não se sustenta apenas realizando reparos, devido aos altos custos da manutenção da estrutura dessas instalações. Ele compara a situação na Ásia, que oferece subsídios aos construtores navais, ao que acontece no Brasil, onde comprar navios de outros mercados é o único caminho.
Em Angra dos Reis (RJ), o Brasfels integra dois módulos e um flare da plataforma MV-30. O serviço sofreu adiamento no cronograma em razão da pandemia. A presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de Angra dos Reis e Região (Sindimetal-Angra), Cristiane Marcolino, lamenta que o estaleiro tenha ficado o ano passado inteiro sem novos projetos de construção e que essa é a única obra garantida no estaleiro atualmente. O sindicato estima que as demissões durante a pandemia não chegaram a 100 pessoas. O Brasfels manteve efetivo de cerca de 1,2 mil. Com a chegada da MV-30, esse número deve subir para 1,5 mil pessoas, segundo as estimativas sindicais.
O Brasfels tem duas obras de sondas da Sete Brasil paradas — aguardam definição do processo judicial. O sindicato calcula que 2,5 mil pessoas deveriam trabalhar nas duas unidades (Urca e Frade), porém o efetivo atual é mínimo. Em 2014, quando a construção das sondas foi paralisada, a Urca estava mais de 90% concluída. A construção da Frade estava em menos de 50%. Especialistas acreditam que, com a paralisação, esses percentuais caíram consideravelmente, pois alguns itens ficaram obsoletos ou sofreram com a ação do tempo. Entre eles, máquinas que ficam inutilizadas, cabeamentos que precisam ser refeitos e tubulações a serem recolocadas.
O presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio Grande e São José do Norte (Stimmmerg), no Rio Grande do Sul, Benito Gonçalves, diz que a situação no Sul não é muito diferente do restante do país. O estaleiro EBR opera na atividade de construção de módulos, com 1,4 mil trabalhadores. Já o estaleiro da Ecovix se encontra em recuperação judicial. Um dos maiores da América Latina e com tecnologia de ponta, o Estaleiro Rio Grande está com o dique seco disponível, mas não está operante.
“Diversas empresas já visitaram, mas não entendemos por que não reativa [o ERG]. Temos que envolver os políticos porque essa matéria é de todos. Temos uma carreira muito grande, apta a trabalhar na renovação da frota da Marinha de guerra, construção de mais FPSOs e reparos. Hoje, temos mão de obra e todo país pode ser contemplado”, defende Gonçalves.
Em Pernambuco, o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Metalúrgicas, Mecânicas e de Material Elétrico de Pernambuco (Sindmetal-PE) estima que o número de trabalhadores efetivos em estaleiros atualmente seja de 100 pessoas no Vard Promar e de 60 pessoas no Estaleiro Atlântico Sul. Após demissões, o EAS contratou pessoal por períodos de seis meses a um ano para execução de serviços de reparo.
O presidente do Sindmetal-PE, Henrique Gomes, disse que os trabalhadores locais estão na perspectiva de que ocorram novas contratações até o final do ano, mantendo uma sequência de serviços no estaleiro, que realizou reparos nos últimos meses. “Fizeram três reparos e deu uma estacionada. Achamos que viriam novas encomendas”, lamenta Gomes.
De acordo com o sindicato, o EAS chegou a ter 11 mil trabalhadores e outros 2.200 atuavam no Vard Promar no último pico de projetos. Em 2014, quando a crise da construção naval se intensificou, havia 6,1 mil trabalhadores diretos no EAS e outros 1,1 mil no Vard Promar. Gomes diz que, em 2014, a construção naval já vinha num cenário que, se não recebesse novas encomendas, ia se afogar. Em relação ao Vard Promar, Gomes diz que os sindicatos estão com poucas informações sobre novas demandas no radar. “O trabalho estava intermitente, mas parou agora. Daqui para o final do ano, temos expectativa de que possam vir alguns empreendimentos de produção de navio ou plataforma. Mas só especulação até momento”, torce Gomes.
O Sindicato Nacional da Indústria da Construção e Reparação Naval e Offshore (Sinaval) avalia que os estaleiros, muitos em situação de recuperação judicial, estão vivendo de “soluços” por falta de incentivos e políticas que estimulem a competitividade. O vice-presidente executivo do Sinaval, Sérgio Bacci, diz que a indústria só não fechou porque existem estaleiros tentando sobreviver e empenhados em encontrar novas frentes de atuação. Nesse período sem encomendas, a maioria deles buscou clientes para docagens e reparos, conversão e atualização de embarcações, aliados a outros serviços, como de terminal de uso privado (TUP).
Bacci diz que torce para que o BR do Mar não aprove tudo que está sendo proposto, por entender que as novas regras podem representar atraso para o país. “Se lograr êxito, espero que não inventem de mandar outros projetos para outras navegações. Aí sim, seria o fim das empresas brasileiras de navegação (EBNs) porque daí só vai ter operador estrangeiro aqui e será o fim da indústria naval”, afirma Bacci. Ele salienta que a indústria já provou ser capaz de construir diferentes tipos de embarcações, inclusive petroleiros e navios de cabotagem.
Ele defende que a Petrobras deveria ser capaz de construir 50% de seus ativos no Brasil, atendendo ao interesse do público brasileiro e gerando empregos. No entanto, ele não vê operadoras estrangeiras construindo no Brasil, com a própria Petrobras adquirindo plataformas no exterior. Em relação ao descomissionamento, Bacci considera que também não há garantias de que haverá plataformas para serem desmanteladas no país. Para ele, as concorrências deveriam estabelecer que o desmantelamento ocorra em estaleiros brasileiros. A avaliação é que, enquanto não houver essa exigência no processo, dificilmente, a desmontagem será feita no Brasil, devido à baixa competitividade de custos.