Inaugurada há 15 anos para abrigar os trabalhadores da então nascente indústria naval de Pernambuco, a Vila do Estaleiro, em Ipojuca, a 50 quilômetros do Recife, deixou de ser um condomínio de casinhas geminadas para abrigar toda a sorte de pequenos comércios.
Os empreendimentos lanchonetes, mercados, academia de ginástica, entre outros foram a saída encontrada por demitidos dos dois estaleiros da região, EAS (Estaleiro Atlântico Sul) e Vard-Promar, após a derrocada do programa de construção naval dos primeiros governos petistas.
“A princípio imaginei voltar para a minha terra, mas decidi montar um negócio”, conta Jonas Slociak, 37, que deixou Itajaí (SC) em 2009 para trabalhar em uma empresa que prestava serviço aos estaleiros. Foi demitido em 2017 e usou a rescisão para abrir uma padaria.
O carioca Avelino Faustino de Oliveira Neto, 58, chegou em 2012. Foi demitido três anos depois e decidiu aplicar a rescisão em uma academia de ginástica. “Estou alimentando a família e tocando a vida”, diz ele, que também foi lutador de boxe. Jonas e Avelino exemplificam a história da Vila do Estaleiro, que atraiu muitos trabalhadores de outros estados quando Pernambuco ainda não tinha condições de treinar gente para construir os estaleiros e, quase ao mesmo tempo, as embarcações encomendadas pela Petrobras.
“Quando eu cheguei aqui não tinha nada, não. Não tinha nem refeitório. Para almoçar, dava uma base de 40 a 45 minutos de carro”, lembra Avelino. Sua experiência em estaleiros do Rio de Janeiro foi fundamental para formar as primeiras equipes de montadores locais.
Hoje, o Vard-Promar está fechado e, como outros estaleiros que viveram a bonança dos anos 2010, o EAS vive de reparos navais. Em meados de setembro, reparava quatro embarcações. Desde que começou a operar nesse ramo, em 2020, foram mais de 50.
“Mantivemos o estaleiro operando, investimos em novas frentes de trabalho com sucesso e demos atenção especial para a atualização e manutenção de nossa mão de obra”, diz o presidente do estaleiro, Roberto Brisolla.
Os reparos garantem a receita para o cumprimento do plano de recuperação judicial da empresa, que chegou a entregar à Petrobras 15 petroleiros e um casco de plataforma de produção de petróleo. Mas demandam uma mão de obra bem menor. Hoje são cerca de 1.200 empregados contra picos superiores a 7.000 quando o estaleiro construía embarcações. O número chegou a superar os 10 mil quando havia obras simultâneas em navios e nas instalações do estaleiro.
Com dois novos estaleiros construídos para atender a demanda da Petrobras, Ipojuca experimentou um período de grande crescimento econômico. O PIB do município mais do que dobrou entre 2008 e 2012. O estoque de empregos formais triplicou, batendo o pico de 75.122 pessoas em 2012.
Os forasteiros que chegaram à cidade ajudaram a treinar um contingente de pernambucanos para trabalhar na indústria naval, o que levava o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) a repetir que o Brasil estava transformando cortadores de cana em soldadores.
Depois, com a crise no setor e as demissões em massa, além da opção pelo comércio, muitos decidiram sair do país para trabalhar, grande parte indo parar em Portugal. É o caso de Manoel Nascimento, 37, nascido em Cubatão (SP), mas morador do Recife desde os 16 anos.
Filho de soldador, ele foi um dos trabalhadores qualificados pelo Senai de Pernambuco e chegou a trabalhar nos dois grandes estaleiros do estado, construindo navios e plataformas. Após a demissão, voltou para o litoral paulista a arriscou uma carreira como corretor de imóveis.
Hoje, é novamente soldador em uma metalúrgica em Portugal e dá dicas na internet para brasileiros que buscam colocação naquele país. Na sua empresa, diz, há muitos compatriotas que fizeram carreira na indústria naval brasileira. “Querendo ou não, estaleiro é uma escola.”
Atrair aqueles que saíram e requalificar os que mudaram de ramo é um dos desafios nessa nova tentativa de reativar o setor. O tema é alvo de um grupo de trabalho que envolve diferentes setores do governo e da indústria.
“O treinamento e requalificação não será tão difícil como no passado”, afirma Ariovaldo Rocha, presidente do Sinaval (Sindicato Nacional da Indústria da Construção e Reparação Naval e Offshore). Ele diz que, hoje, as empresas já têm centros próprios de treinamento e não dependem de terceiros.
A atividade de reparo de embarcações é menos atraente para os trabalhadores, já que geralmente envolve contratos temporários sem os mesmos benefícios de quando as contratações eram com carteira assinada.
Avelino, por exemplo, diz que não voltaria para trabalhar em reparo. “É trabalho que que quase ninguém quer, o cara pega quando não tem nada”, diz. Mas não pensa duas vezes se for chamado para construir embarcações. “Boto outro para ralar aqui [na academia] e vou na hora.”
Intensivo em mão de obra qualificada, o setor é visto como bom pagador de salários, em comparação com outros segmentos da economia. “Nunca mais consegui manter aquele padrão de vida”, diz Nascimento, que não descartaria voltar ao Brasil se chamado por um estaleiro. “Ninguém gosta de morar fora do país.”
Pai de dois soldadores que migraram para Portugal, o pernambucano Francisco da Silva, 58, conta que seu salário quadruplicou apenas dois anos após deixar o emprego de ajudante industrial em uma montadora de ônibus para trabalhar na área de logística do EAS.
“Tudo que consegui foi graças ao estaleiro”, diz ele, enquanto mostra orgulhoso à reportagem a casa de três andares com cozinha planejada, construída sobre o antigo imóvel de um cômodo em que vivia. Hoje, Francisco trabalha como porteiro, com salário bem mais baixo e sem benefícios.
“Tem hora que eu volto um filme e fico pensando: foi um tempo bom”, afirma. “Quem sabe, né, bicho, a oportunidade volta? Se voltar, eu estou lá.”