Estímulo à cabotagem precisa aliar disponibilidade de frota à concorrência, aponta consultora.
Principal bandeira do governo na atividade de navegação, o BR do Mar deve ter seu texto conhecido nos próximos dias. Nos bastidores, se fala que o projeto de lei do programa de estímulo à cabotagem está próximo de ser encaminhado ao Congresso. As informações são de que o projeto se encontra na Casa Civil. Procurado pela reportagem, o Ministério da Infraestrutura confirmou a previsão de envio do PL ao parlamento nesta semana. “O texto final do PL do BR do Mar foi finalizado pelas equipes dos ministérios envolvidos e da Casa Civil, estando pronto para envio [ao Congresso] pelo Presidente da República”, informou a pasta à Portos e Navios.
As primeiras expectativas eram de que o programa de incentivo à cabotagem fosse lançado em 2019, porém a formatação passou por uma série de ajustes internos desde então. As propostas de mudanças relacionadas ao lastro para afretamento de navios com bandeiras estrangeiras geraram dificuldade de consenso entre os ministérios da Infraestrutura e da Economia. Nesse período, também houve um processo de decisão quanto ao envio da proposta como projeto de lei ou medida provisória.
Para o Sindicato Nacional da Indústria da Construção e Reparação Naval e Offshore (Sinaval), a formatação que se tem conhecimento público do BR do Mar não encaminhou de forma eficaz soluções para questões como burocracia, tributação sobre o preço do combustível marítimo (bunker), tripulação e segregação de contêineres. Na prática, a percepção é que o programa endereçou principalmente a questão do afretamento de navios de bandeiras estrangeiras. O vice-presidente executivo do Sinaval, Sérgio Bacci, considera que faltou diálogo mais amplo com os agentes do setor na concepção do programa.
O Minfra ressaltou que o PL do BR do Mar não propõe novas regras de importação de embarcações. Já a exigência de tripulação brasileira é um dos itens que estão sendo abordados pelo BR do Mar, segundo a pasta. O projeto prevê novas hipóteses de afretamento a tempo que as EBNs poderão fazer e colocar a necessidade de quantitativos mínimos de marítimos brasileiros nestas embarcações afretadas.
A pasta lembrou que a legislação sobre o ICMS de qualquer produto é de competência estadual, cabendo aos estados atuarem no sentido de redução deste importante custo que impacta nas operações de cabotagem. “A equipe do Minfra tem debatido o tema com alguns estados, que têm demonstrado grande interesse em protagonizar este assunto na agenda do Confaz (Conselho Nacional de Política Fazendária), etapa necessária para viabilizar juridicamente a redução do ICMS para valores abaixo de 12%”, manifestou em nota.
Camila Affonso, sócia da Leggio Consultoria, avalia que o BR do Mar é positivo, mas não promove as melhores condições de competição na cabotagem. Ela vê como avanços regulatórios necessários a desvinculação do modal da construção naval, a fim de permitir ampliação da oferta de navios no país e propor redução de impostos na operação de cabotagem. Por outro lado, a consultora avalia que o aumento da competição entre os players, que promove melhores condições de oferta de serviços e preços, é parcial. A especialista vê muitas travas na questão da frota que limitam crescimento ativos de navios disponíveis.
“Dentro do programa não observamos ações específicas para possibilidade de haver mais players dentro do mercado de cabotagem. Concentrado em poucos players, ele afeta a dinâmica do setor, oferta de serviços e custos”, disse Camila. Ela acredita que a liberação para o uso de embarcações com bandeiras estrangeiras, sem a necessidade de lastro em navios de bandeira brasileira, poderia solucionar o problema da falta de oferta de navios no setor. No entanto, o instrumento proposto reforça a concentração de mercado em poucos players já percebida atualmente.
Camila comparou que o Brasil já desenvolveu, ao longo das últimas décadas, mecanismos para garantir o cumprimento de contratos de longo prazo na área de infraestrutura, sem necessariamente vincular a uma operação previamente estabelecida no território nacional. Ela disse que isso já acontece em outros segmentos, como nas concessões portuárias, aeroportuárias e ferroviárias. Dessa forma, o país consegue garantir que as empresas aqui estabelecidas mantenham um bom nível de serviço através de uma regulação adequada, sem passar pela exigência de terem outro ativo semelhante em uma determinada região ou setor.
A consultora identifica que, na concessão de ativos públicos e nos ativos privados dentro de setores regulados, o governo vem amadurecendo mecanismos para solucionar problemas na obediência aos contratos, como no cumprimento de requisitos de investimento ao longo dos termos contratuais. Segundo Camila, a falta de profundidade dos mecanismos observados no BR do Mar para garantir o funcionamento adequado do setor, na prática, reforçam a pouca competição.
Os granéis líquidos, principalmente combustíveis e químicos, e contêineres são os dois principais tipos de carga nos fluxos de longa distância deste modal no Brasil. A expectativa é que a abertura do mercado de refino no país aumente a pressão por oferta na cabotagem. O mercado espera competição entre refinadores, após o processo de desinvestimento da Petrobras. Camila entende que o novo marco da cabotagem deveria contemplar todos os tipos de carga, sem se restringir a granéis sólidos e contêineres, ainda que como um passo inicial para o desenvolvimento do setor. “Torna-se importante repensar a dinâmica de mercado na cabotagem. Hoje, já existe o interesse da indústria química em ampliar o transporte de granéis líquidos neste modal. No entanto, existe concentração de mercado em poucas empresas e com grande dependência da Transpetro”, aponta a consultora.
O PL 3129/2020, apresentado em junho, também trouxe propostas para incrementar o afretamento de navios a casco nu e visando afastar entraves para o afretamento a tempo de navios estrangeiros, quando não houver navio nacional para atender a demanda. Segundo a autora, a senadora Kátia Abreu (PP-TO), essas propostas contribuem para aumentar a oferta de navios e dar competitividade do setor. O PL também propõe a eliminação gradativa da cobrança do Adicional ao Frete para Renovação da Marinha Mercante (AFRMM) por meio de desoneração fiscal, com renúncia total a partir do quinto ano de vigência. A autora frisou que, como encaminhamento do BR do Mar ao parlamento era aguardado, desde meados do ano passado, houve a iniciativa de reunir algumas medidas que decorreram de diálogo com o setor da navegação e seus embarcadores de carga, além de representantes dos usuários e do setor produtivo.
A percepção da Leggio é que a iniciativa do projeto de lei da senadora contribuiu para dar celeridade ao envio do PL do BR do Mar pelo governo ao Congresso. Camila enxerga convergência nas duas frentes, o que pode caminhar para um bom desfecho. Ela destacou o tom ‘conciliador’ do Ministério da Infraestrutura quanto ao PL da senadora e ressaltou que o BR do Mar faz parte de um pacote do governo no sentido de estimular a recuperação econômica, o que pode torná-los complementares.