Proposta de metas voluntárias ameaça clima e desacelera desenvolvimento tecnológico do setor
A Organização Marítima Internacional (IMO), da ONU, negocia esta semana um plano de redução de emissões de gases causadores do efeito estufa com representantes dos 174 estados membros reunidos em ambiente online.
As tratativas englobam 60 mil navios comerciais, que juntos transportam 80% do comércio global, e devem priorizar medidas de curto prazo que avancem na redução até 2023, antecipando o pico de emissões para o quanto antes. Os resultados serão levados ao Comitê de Proteção ao Meio Ambiente Marinho (MEPC75), que se reunirá de 16 a 20 de novembro para finalizar o plano.
Este é um passo importante para implementação do histórico acordo de 2018 (.pdf), que estabelece reduzir as emissões da navegação mundial a 50% dos níveis de 2008 para o cumprimento dos objetivos do Acordo de Paris.
O Brasil se posicionou contra o pacto, ao lado de EUA e Arábia Saudita. Na reunião desta semana, uma articulação liderada por Japão e Noruega tenta tornar as metas do plano voluntárias até 2030. Se obtiver êxito, a iniciativa colocaria os objetivos do Acordo de Paris na berlinda porque a navegação internacional emite 1 bilhão de toneladas de CO2 por ano, uma poluição sem dono que continuará subindo por mais uma década sem a existência de uma meta obrigatória.
O engenheiro químico Alexandre Salem Szklo, pesquisador do Centro de Economia Energética e Ambiental do COPPE/UFRJ, explica os desafios que o Acordo da IMO impõe à indústria naval mundial. Para ele, as metas do pacto são ambiciosas e dependem de uma transformação tecnológica do setor em termos de eficiência energética e novos combustíveis. E caso a reivindicação de não obrigatoriedade das metas seja aceita pelo órgão, essa mudança ficará ainda mais difícil no futuro.
“Aqui estaríamos indo aquém de metas de ganhos de eficiência, o que é um passo atrás realmente grande, para além da própria questão dos combustíveis alternativos”, avalia.
“Caso após 2030 queira-se voltar para metas mais rigorosas, o papel de combustíveis alternativos e tudo que os envolve (logística, motorização, tancagem e produção) se tornará ainda mais dramático.”
Impacto no Brasil
A economia brasileira é uma grande exportadora de commodities — produtos que pesam muito, ocupam espaço considerável nas embarcações e não têm valor agregado elevado. A situação é oposta à dos exportadores de produtos industrializados, sobretudo os de tecnologia, que pesam pouco, valem muito e podem ser transportados em aeronaves.
O país também está distante dos maiores mercados globais, e as pesadas embarcações carregadas, por exemplo, com minério de ferro, percorrem longas distâncias até chegar à China ou à Europa, emitindo quantidades exorbitantes de gases causadores do efeito estufa no trajeto.
Um estudo (.pdf) do Instituto Clima e Sociedade (iCS), feito após a acordo da IMO, traçou três cenários para os custos dessas emissões a depender do crescimento anual das toneladas transportadas (baixo, médio e alto).
A exportação de petróleo brasileira perderia competitividade em qualquer cenário; a soja seria menos impactada se o combustível das embarcações for substituído por óleo vegetal; e o minério de ferro dependerá fortemente do repasse do aumento de custo para o comprador.
O Brasil é o principal fornecedor de minério de ferro para o mercado chinês, mas também é o exportador com as maiores intensidades de emissão de kgCO2 por tonelada transportada — cerca de três vezes acima do seu principal concorrente, a Austrália. Ainda segundo o estudo, o envio de soja brasileira para a China é 10% mais intensivo em carbono do que o produto dos EUA.
“Não há dúvidas de que a taxação das emissões da navegação será um golpe para o Brasil, mas não adianta entrar numa lógica de vitimização. Processos como esse fazem parte da história do capitalismo”, avalia Szklo.
Corrida tecnológica
A redução da velocidade das embarcações (slow steaming), encurtando o tempo de espera dos navios nos portos, é uma das poucas soluções do tipo “win-win” para redução das emissões da navegação, explica Szklo. Ela gera economia de custo de operação ao mesmo tempo que polui menos. Medidas como essa, que reduzem o consumo de energia das embarcações, são importantes, mas insuficientes para atingir a meta da IMO.
O combustível mais usado na navegação é o bunker, um derivado barato do petróleo e extremamente eficiente em gerar energia. Ele representou um avanço em relação ao carvão, combustível mais usado pelos navios no começo do século XX e que exigia um espaço enorme da embarcação para sua estocagem.
O professor explica que há diferentes rotas para reduzir as emissões da navegação sendo pesquisadas no mundo, mas duas se destacam: o bio-bunker derivado de biomassa, como por exemplo, óleos vegetais; e a amônia obtida a partir da síntese de hidrogênio e nitrogênio.
A primeira exigiria menos adaptações da indústria naval, enquanto a segunda envolve mudanças na logística portuária e nos motores dos navios. É exatamente na segunda opção, que exige mais investimento, que europeus e asiáticos apostam porque seus países não têm o potencial agrário para produzir a biomassa necessária ao bio-bunker.
Há três projetos de navios movidos a amônia em desenvolvimento no mundo, todos eles iniciados em 2020.
O mais ambicioso deles é o da empresa sul-coreana Daewoo Shipbuilding & Marine Engineering Co, em parceria com a Lloyd’s Register e a fabricante global de motores MAN Energy Solutions. Eles estão projetando desde junho um porta-contêineres com capacidade de 23 mil TEUs, que deve entrar em funcionamento até 2025.
Já a empresa norueguesa Equinor optou por um retrofit para transformar o navio Viking Energy, que usa gás GNL, em uma embarcação movida a amônia até 2024.
E o Instituto de Pesquisa e Design de Navios Mercantes de Xangai (SDARI), em parceria com a empresa ABS, está desenvolvendo um protótipo de porta-contêiner movido a amônia com capacidade de 2,7 mil TEUs.
As duas rotas tecnológicas têm problemas de sustentabilidade que podem produzir um efeito bumerangue, ou seja, gerar mais emissões no processo de obtenção do que a queima dos combustíveis fósseis.
No caso da amônia, para ser considerado “verde”, o hidrogênio empregado no processo teria que vir de fontes renováveis de energia, como por exemplo, a energia solar, e a maior parte do hidrogênio produzido hoje depende de termelétricas a gás. Por outro lado, a produção concentrada de energia solar disputa o uso do solo e pode deslocar comunidades e a produção de alimentos, além de elevar o preço da terra.
Os bio-bunkers também dependem da conversão de grandes áreas para a produção de biomassa, elevando o risco de desmatamento e especulação fundiária. Bio-bunkers de diferentes origens e também biocombustíveis, como etanol e o biodiesel, já são usados em menor escala na indústria naval, principalmente em uma mistura com o bunker fóssil, mas essas opções custam mais e geram menos energia.
O Brasil é o segundo maior produtor de biocombustíveis, atrás dos EUA, e poderia se beneficiar diretamente da descarbonização da navegação internacional porque já tem capacidade de produção desses produtos em escala industrial.
“O desenvolvimento dessa rota tecnológica para a indústria naval depende de um compromisso claro de sustentabilidade, que hoje representa a principal barreira dos biocombustíveis navais e bio-bunkers”, afirma Szklo.
“No caso brasileiro, enquanto uma parte do setor produtivo explica aos investidores internacionais que o etanol não é produzido na Amazônia e não tem relação com o desmatamento do bioma, outros empresários — que eu quero crer que sejam uma pequena minoria — falam em produção amazônica de cana-de-açúcar, mesmo sabendo que aquela região não é adequada para esse tipo de cultura.”
Para o pesquisador, enquanto o Brasil perde tempo e credibilidade, o mercado naval investe em alternativas.