O número de embarcações e plataformas de petróleo e gás chegando ao final do ciclo de vida continua a projetar uma demanda relevante de serviços de desmonte de navios e descomissionamento e desmantelamento de unidades offshore no Brasil. Os estaleiros nacionais se consideram preparados para executá-los, mas aguardam com cautela a concretização desses projetos em instalações no país. Os agentes avaliam que falta uma definição mais clara das normas brasileiras para certificação dos prestadores desses serviços, bem como das regras que estimulem a preferência ou criem incentivos para que os desmantelamentos não gerem mão de obra em estaleiros no exterior.
O projeto de lei sobre a reciclagem de embarcações (PL 1.584/2021), que tramita na Câmara dos Deputados, ainda precisa passar pelas comissões de Constituição e Justiça e Cidadania (CCJC) e de Viação e Transportes (CVT), onde haverá oportunidade para apresentação de emendas. Há expectativa no setor de que o Congresso retome a apreciação nas comissões ainda este ano, após o período eleitoral. Caso contrário, a definição das regras ficará para 2023. O projeto, de autoria do deputado Coronel Armando (PSL-SC) e apresentado em abril de 2021, regulamenta a reciclagem de embarcações e estabelece as diretrizes para a gestão e o gerenciamento dessa atividade.
A proposta prevê regras detalhadas voltadas aos estaleiros de reciclagem, armadores, Marinha e órgãos ambientais. As regras se aplicam a todas as embarcações em águas jurisdicionais brasileiras, incluindo plataformas flutuantes ou fixas de petróleo. O PL estabelece que toda embarcação destinada à reciclagem deve ter um plano para esse fim, elaborado antes do início do processo pelo operador de estaleiro de reciclagem. A exceção é para as embarcações com arqueação bruta menor ou igual a 300 AB, que estão isentas do plano. O texto aprovado na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CMADS), no ano passado, apenas não inclui embarcações da Marinha do Brasil e aquelas com menos de oito metros de comprimento e que não utilizam motor.
O plano de reciclagem deverá conter informações sobre os materiais perigosos e resíduos, que devem ter plano próprio de gerenciamento aprovado por órgão ambiental. O responsável pela embarcação deve fornecer ao estaleiro de reciclagem todas as informações necessárias para a confecção do plano, que só pode ser implementado após aprovação por órgão ambiental.
No dia 3 de agosto, o relator do PL, deputado General Girão (PL-RN), leu o parecer na Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional (CREDN). Em julho, Girão havia recomendado a aprovação do parecer aprovado na CMADS no final do ano passado. O prazo de vista na CREDN foi encerrado no último dia 29 de agosto.
O diretor da Sociedade Brasileira de Engenharia Naval (Sobena), Ronald Carreteiro, observa que muitos estaleiros estudaram ou fizeram consultas sobre descomissionamento e aguardam as definições das regras sobre a atividade. “Sem legislação, não tem como investir. Estão todos na expectativa. É um mercado pujante para o Brasil”, comenta Carreteiro, que é CEO da Rona Assessoria.
O engenheiro espera que, com a resolução saindo de acordo com as necessidades do setor, alguns estaleiros que já estão interessados e até aparelhados fiquem prontos para entrar no mercado de desmantelamento de forma imediata. “Esperamos que a resolução esteja pronta, no máximo, até meados de 2023. Ela será importante para o desenvolvimento de uma política no Brasil de descomissionamento ou de ship recycling”, estima Carreteiro.
O professor adjunto da Escola de Engenharia Industrial Metalúrgica de Volta Redonda da Universidade Federal Fluminense (UFF), Newton Narciso Pereira, acredita que existem condições de realizar o desmantelamento e a reciclagem das instalações offshore no país, o que ainda esbarra na necessidade de uma legislação que ofereça mais segurança jurídica para sua execução. Pereira considera que o PL em tramitação no Congresso tem o objetivo de fomentar a atividade de reciclagem naval no Brasil. O professor entende que o PL 1.584/2021 deverá auxiliar tanto os órgãos públicos quanto as empresas privadas na ampliação deste mercado interno.
“Em termos de infraestrutura, temos estaleiros que podem realizar a atividade de reciclagem, uma vez que aqueles que atuam na construção naval também podem operar no desmantelamento e reciclagem”, projeta Pereira, que também é o coordenador do Centro de Estudos para Sistemas Sustentáveis da universidade (CESS/UFF). Ele destaca que o descomissionamento recente do campo de Cação, na Bacia do Espírito Santo, é visto como bem-sucedido no Brasil. “Isso mostra que temos capacidade de realizar as atividades no país, com responsabilidade e atendendo os critérios de segurança operacional”, afirma o professor.
Pereira vê a resolução 817/2020 da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) como um instrumento que apresenta todos os requisitos necessários para realização do descomissionamento offshore, possibilitando orientar as atividades das operadoras para que a agência reguladora e órgãos como Marinha e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) possam avaliar e dar os respectivos pareceres sobre os projetos de descomissionamento em águas brasileiras.
Para o coordenador do CESS/UFF, a busca pela extensão da vida útil das instalações é um processo natural. “Não acho que teremos muitas alterações em relação aos PDIs [Programas de Descomissionamento de Instalações] que já foram entregues à ANP, uma vez que já existe uma expectativa de vários descomissionamentos nos próximos anos. Já foram decisões tomadas pelas empresas”, analisa Pereira.
Atualmente, existem 40 processos de PDIs offshore, sendo 29 aprovados, conforme o painel dinâmico de descomissionamento da ANP. A maior parte dos PDIs de instalações no mar está localizada nas bacias de Campos, Santos, Potiguar e Sergipe. De acordo com a ANP, 18 plataformas estão liberadas para serem descomissionadas. Elas estão distribuídas pelas bacias de Campos, Espírito Santo e Sergipe.
Em 2022, foram aprovados 12 PDIs e 2 RDIs (relatório de descomissionamento de instalações) de exploração e produção. Na última atualização do painel dinâmico de descomissionamento de instalações de exploração e produção da ANP, no dia 2 de agosto, havia 98 processos com PDI, considerando campos offshore e em terra. Desse total, 76 estavam aprovados e 11 sobrestados, além de sete recebidos e quatro encerrados.
Do ponto de vista internacional, o marco foi o regulamento europeu para reciclagem de navios (UE 1.257/2013), que entrou em vigor em 2018 e obriga os armadores europeus a enviarem suas embarcações para reciclagem somente em estaleiros autorizados, que estejam na lista aprovada pela União Europeia. Atualmente, existem cerca de 40 instalações de reciclagem aprovadas para receber esses navios, habilitadas para realizar a reciclagem atendendo aos critérios ambientais, de segurança e trabalhistas presentes no regulamento.
Pereira, da CESS/UFF, diz que o projeto de lei proposto para a reciclagem de embarcações no Brasil foi desenvolvido com base no regulamento europeu e incorporou os elementos da Convenção de Hong Kong, no que se refere aos aspectos de Inventário de Materiais Perigosos (IHM), entre outros elementos.
Ele acrescenta, que, nesse sentido, o PL está alinhado às melhores práticas internacionais que já estão sendo aplicadas, além de incorporar também os aspectos das legislações brasileiras que já versavam sobre o tema de reciclagem, como o Plano Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305/2010), que prevê programas de incentivos à reciclagem, que poderiam ser aplicados também à reciclagem de embarcações no país.
“Entendo que a proposta do PL 1.584/2021 traz uma importante contribuição para a segurança jurídica da atividade de reciclagem de embarcações em geral no país. Naturalmente, alguns aspectos ainda poderão ser ajustados para atender ao interesse de todas as partes interessadas”, avalia Pereira.
O professor observa que muitas empresas já estão operando no país atendendo às demandas das petroleiras. Pereira cita o caso da licitação para realização da remoção do almoxarifado submarino (Alsub). Ele considera que essa não deixa de ser uma operação ligada ao descomissionamento, por consistir na remoção dos materiais que foram armazenados no leito marinho, trazendo-os para superfície para posterior destinação correta. “Temos empresas trabalhando com projetos de engenharia para descomissionamento, envolvendo os processos de gestão de projeto, inspeção, mergulho, apoio offshore entre outros serviços que estão se consolidando no Brasil”, elenca Pereira.
O Enseada (BA) acompanha e projeta estar preparado para o caso de materialização de projetos de descomissionamento no Brasil. “Está no nosso radar, mas não temos no nosso plano de negócios neste momento. Temos sido demandados pelos nossos clientes para estudar e oferecer nossos serviços. Ainda não é um vetor de crescimento que colocamos no curto prazo”, afirmou Maurício Bastos Almeida, durante a 16ª Navalshore, em agosto, quando ocupava a posição de CEO do Enseada. Em setembro, ele assumiu a diretoria de plantas industriais da Tenenge, empresa do grupo OEC/Novonor. Almeida segue como presidente do conselho do Enseada.
Almeida conta que a empresa não deu entrada em nenhuma licença para descomissionamento. Ele explica que, para atuar nesse mercado, a empresa precisa fazer um pequeno investimento para adequar as instalações para atender à Convenção de Hong Kong. Num primeiro momento, o Enseada teve algumas conversas com certificadoras e constatou que o investimento necessário não seria muito demorado, nem muito custoso.
“Não vamos fazer investimento esperando o mercado acontecer. Já fizemos investimento de US$ 1 bilhão para um mercado que não aconteceu da maneira que imaginávamos. Estamos mais com os pés no chão, olhando para clientes que precisam de nós nesse momento e revocacionando nossas instalações para esse mercado”, explica Almeida.
Na ocasião, ele disse que a empresa continuará buscando ampliar a utilização das instalações portuárias não só para granéis minerais, como para granéis vegetais futuramente. O empreendimento, que tem autorização para operar como terminal de uso privado (TUP), espera continuar a atender cargas eólicas. Na parte industrial, módulos de FPSO, integração de FPSOs eventualmente e reparos navais. Ainda na parte de indústria pesada, fabricação de estruturas metálicas para eólicas offshore e onshore, fundações e jaquetas.
O Enseada estabeleceu uma parceria estratégica com a Tenenge, fabricante tradicional de montagem e engenharia industrial do grupo OEC. Hoje, o Enseada e a Tenenge juntos vão mirar os mercados de petróleo e gás, de módulos offshore e de módulos onshore. Enseada e Tenenge vão atender plantas petroquímicas ou qualquer instalação industrial onshore que demande um projeto modularizado. “A Tenenge tem milhares de trabalhadores no Brasil e no exterior e vai agregar com o fortalecimento da nossa mão de obra técnica especializada. Estamos dando visibilidade para essa parceria. Esperamos atender nossos clientes de forma profissional e com mão de obra qualificada”, projeta o agora diretor de plantas industriais da Tenenge.
O diretor-presidente dos estaleiros Mauá e Ilha S.A. (Eisa), Geraldo Ripoll, conta que, nos últimos anos, o Eisa vem dando passos importantes para se capacitar para fazer desmantelamento de embarcações e, eventualmente, plataformas que sejam levadas por balsas. Recentemente, um relatório técnico no site do Instituto Estadual do Ambiente (Inea) apontou que o Eisa atende a todos requisitos para esse tipo de serviço. Até o fechamento desta edição, o relatório dependia de avaliação do conselho do órgão ambiental para concessão da licença, que incluiria a possibilidade de execução de desmantelamentos.
“Hoje, no Rio de Janeiro, não existe nenhum estaleiro habilitado a fazer desmantelamento naval e o Eisa atendeu a todas as exigências do órgão ambiental”, destaca Ripoll. Somente na Baía de Guanabara, estima-se que mais de 70 embarcações precisam ser desmanteladas. O Cluster Tecnológico Naval do Rio de Janeiro também vem estudando essas demandas no interior da baía, onde existe um conjunto de ações para retirada desses cascos soçobrados, que precisarão ser desmantelados nos próximos anos.
No final de 2021, o Eisa contratou profissionais independentes que acompanharam um desmantelamento autorizado judicialmente e verificaram que os procedimentos e as instalações do estaleiro atendiam à norma europeia, baseada na Convenção de Hong Kong.
Ripoll relata que o parecer aponta que o Eisa pode ser submetido aos órgãos no exterior para obter certificado internacional de desmantelamento no estaleiro. “Estamos correndo paralelamente de duas maneiras: buscar certificação internacional e que saia licença ambiental via Inea com a inclusão do desmantelamento, que já foi reconhecido pelo relatório técnico. Ainda não temos isso oficializado”, explica Ripoll.
A presidente do Atlântico Sul Heavy Industries Solutions, Nicole Terpins, diz que o estaleiro não é certificado, mas já reúne uma série de exigências que o capacitam para obtenção de selo verde. “Adequamos nossas instalações para nos qualificarmos ao selo de estaleiro verde. Buscamos certificação para dar visibilidade à adequação. Atendemos os requisitos de estaleiro verde”, ressalta Nicole. Ela conta que o Atlântico Sul passou por uma auditoria rígida e que contratou uma empresa para certificar o empreendimento com selo para hidrogênio verde.
A executiva lembra que o estaleiro foi concebido para construção de grandes embarcações, com demanda lastreada em projetos da Petrobras e que, sem garantia de financiamentos e demanda, foi necessário destinar parte dos ativos a outras frentes para prestigiar o investimento feito no estaleiro e os credores que confiavam no projeto de longo prazo. “Entendemos que não faz sentido manter a estrutura disponível para uma demanda que, neste momento, não conseguimos enxergar como antes”, ressalta Nicole.
Ela explica que a adequação do estaleiro à realidade atual do setor passou pelos estudos para o melhor vocacionamento dos ativos, que foram concebidos para uma demanda de construção naval que não é mais perceptível no horizonte de curto prazo. Para isso, houve a desconstrução dos pilares que um dia justificaram e balizaram o projeto de revitalização da indústria naval. “Temos total capacidade para continuar todos os projetos que nos propomos e entrar em projetos da construção naval também. Por enquanto, não vemos o mercado de construção naval retomar da forma como gostaríamos”, afirma Nicole.
O descomissionamento também é um dos mercados em desenvolvimento que estão no radar do Estaleiro Rio Grande (RS). O diretor operacional da Ecovix, Ricardo Ávila, diz que, apesar do foco na construção, a Ecovix, que administra o ativo, continua a prospectar novos negócios, como reparos, e estuda oportunidades futuras para estruturas pesadas para eólicas offshore. A empresa, que também avançou na recuperação judicial, vislumbra ainda parcerias para projetos no setor de petróleo e gás, principalmente na área de módulos.
Em alguns estados, como Rio Grande do Sul e Bahia, os órgãos ambientais interpretam que estaleiros que atendem à NR-34 para atividades de construção e reparo navais também podem realizar desmantelamentos. Já em outras unidades da federação, há necessidade de o estaleiro atender a uma série de requisitos que os demais estados não exigem para realização de serviços de desmantelamento.
Atualmente, existem 18 unidades liberadas pela ANP para serem descomissionadas. Algumas estão hibernadas aguardando processo interno para definição se serão vendidas, revitalizadas ou descomissionadas. Segundo Carreteiro, da Sobena, existe uma quantidade relevante de plataformas hibernadas desde 2020 que aguarda por uma definição sobre revitalização. O engenheiro acrescenta que é possível avaliar o aproveitamento de parte das estruturas de algumas dessas plataformas para projetos de geração de energia no mar, como eólica, hidrogênio verde e solar.
Carreteiro observa que, com aumento do preço do petróleo, plataformas na Europa que seriam descomissionadas estão sendo revitalizadas e continuando a operar por um período maior. O entendimento é que o momento é de investir na produção, aproveitando a alta das cotações da commodity, e a demanda por energia. No Brasil, o setor tem mapeados projetos para a construção de quase 40 novas plataformas até 2030.
O diretor da Sobena avalia que os estaleiros europeus não têm condição de desmantelar por causa do porte das instalações, o que faz com que os navios no fim do ciclo de vida acabem indo para serem desmantelados na Ásia. Outro agravante é que, hoje, estão sendo aplicadas multas severas aos armadores, mesmo após a mudança de propriedade, o que cria um grande passivo jurídico. Ele considera importante inserir aspectos tributários no PL sobre reciclagem, para que o Brasil tenha mais competitividade.
“Como não tem estaleiro de porte para fazer [na Europa], a alternativa é o Brasil. Estamos cheios de estaleiros precisando de obras. Temos que olhar para esse mercado”, defende o engenheiro.