Depois de um período de franco otimismo em meados da década passada, a indústria brasileira do petróleo mergulhou no atual marasmo em que desponta a brutal deterioração das condições econômico-financeiras da Petrobras. A política de conteúdo local (PCL) tem sido apontada como um dos principais fatores explicativos dessa situação. Ao exigir que a empresa adquira a maior parcela de sua demanda de equipamentos e serviços no mercado doméstico, a PCL teria criado o ambiente favorável para a prática de preços abusivos explicitado nas horrendas revelações da Operação Lava-Jato.
Concebida na esteira da política de substituição de importações (PSI), a PCL padece de um vício de origem. Como no caso da PSI, a PCL foi essencialmente limitada à oferta de barreiras protecionistas que permitem às empresas estabelecidas no país adotarem preços não competitivos.
No entanto, esse vício não é inerente a políticas de CL. Como nos ensinam a Noruega e o Reino Unido, a PCL pode ser um instrumento eficaz na estruturação de um parque competitivo de fornecedores domésticos para a indústria do petróleo global. Para tanto, basta explorar adequadamente as oportunidades de ganhos de escala na produção de hidrocarbonetos abertas pelo desenvolvimento de uma nova fronteira petrolífera.
Na década passada, a PCL não era percebida pelos agentes como empecilho para o desenvolvimento da indústria brasileira do petróleo. A escala produtiva do upstream brasileiro caminhava para patamar similar ao alcançado no Golfo do México e no Mar do Norte. Objetivando explorar essa janela de oportunidades, a maioria das empresas ativas no offshore global veio se instalar no Brasil.
Para garantir a confiabilidade técnica dos equipamentos e processos ofertados, diversos fornecedores instalaram centros de pesquisa no Brasil para apoiar o CENPES no desenvolvimento das inovações demandadas pelo offshore profundo. Ainda que os preços praticados pelos fornecedores domésticos fossem mais elevados na fase de aprendizado tecnológico, as empresas petrolíferas percebiam no incremento do suprimento local um benefício econômico. Ele reduziria custos ao permitir o ajuste fino dos prazos de entrega dos fornecedores aos cronogramas dos projetos. Deslanchada no final do século passado, a progressiva liberalização do mercado brasileiro do petróleo provocaria a convergência entre os preços domésticos e os vigentes no mercado internacional.
Ironicamente, a descoberta de campos supergigantes no pré-sal, apesar de incrementar a escala da indústria brasileira do petróleo, tornou-se o avatar da PCL. O plano de negócios da Petrobras foi multiplicado, sem atentar para a incapacidade de o parque fornecedor doméstico atender à demanda de bens e serviços sugerida nesses planos.
Por seu lado, negligenciando as limitações industriais e tecnológicas do parque fornecedor doméstico, a ANP passou a adotar critérios mais estritos e complexos em suas demandas de CL. Além disso, o governo incrementou as necessidades financeiras e pressionou a capacidade de gestão da Petrobras ao obrigar a empresa a participar como operadora única no desenvolvimento dos reservatórios do pré-sal. Mais ainda, o governo colocou a gestão dos projetos do pré-sal sob o controle de uma empresa neófita na indústria do petróleo (PPSA). Esse conjunto de ações, em um período de preço do petróleo insustentavelmente elevado, criou ambiente favorável para a explosão nos custos dos projetos da Petrobras, origem dos problemas apontados na Lava-Jato.
A queda do preço do petróleo para o patamar atual remove a maior parte do incentivo para a prática de preços abusivos no suprimento de bens e serviços para a indústria do petróleo. A decisão anunciada pela Petrobras de redimensionar seu plano de negócios, abandonando o projeto de construção de duas novas refinarias no Nordeste e reduzindo o escopo do complexo petrolífero de Itaboraí, também contribui significativamente para a redução daquele incentivo. Essa decisão elimina os problemas na área do downstream identificados pela Operação Lava-Jato (é interessante notar que a área de abastecimento não está no âmbito da PCL administrada pela ANP!).
Não seria, então, o caso de abandonar a PCL para dissuadir de vez a prática de preços abusivos na aquisição de bens e serviços da Petrobras? É preciso muito cuidado para não jogar fora a criança (PCL) com a água do banho (corrupção na Petrobras). A escala da indústria brasileira do petróleo exige a produção local da maior parte dos seus equipamentos e serviços para garantir a sua competitividade econômica. Os efeitos industrializantes da produção local são significativos (nos EUA, a indústria do petróleo é responsável por nove milhões de empregos), funcionando como forte indutor da retomada do crescimento industrial. Isso posto, é importante reconhecer a necessidade de uma profunda revisão na PCL brasileira.
Depois de pouco mais de um quarto de século de domínio do Oriente Médio, o controle geopolítico do suprimento de petróleo está voltando para a bacia Atlântica. A produção não convencional (shale oil) e os reservatórios supergigantes do Atlântico Sul (Brasil e África) serão as principais fontes de suprimento de petróleo seguro para o mundo industrial nas próximas décadas. Essa situação oferece ao Brasil a oportunidade de se posicionar favoravelmente na cadeia produtiva global do petróleo.
É importante ter claro que o país não pode prescindir da cooperação internacional no desenvolvimento da miríade de inovações tecnológicas necessárias para dar viabilidade econômica à produção no offshore profundo. Induzir o enraizamento desses novos conceitos tecnológicos na economia brasileira, com o objetivo de inserir o parque fornecedor doméstico na cadeia petrolífera global, deve ser o principal foco da nossa PCL. Para tanto, é essencial um plano articulado de ação para a indústria do petróleo que combine as atuações dos ministérios do Desenvolvimento, Ciência e Tecnologia e das Relações Exteriores.