É esperado dos que chegam ao poder a alteração da composição do governo e é do jogo que forças econômicas operem para que suas crenças sejam acolhidas. Democracias saudáveis possuem mecanismos que estimulam o debate e evitam que o processo de mudança ocorra de maneira autoritária, impulsiva ou insensata.
O Brasil, entretanto, espanta pela velocidade e frequência com que opera drásticas alterações em suas políticas públicas. Letárgicos na implementação das reformas estruturais e afoitos ao tomar decisões que afetam setores inteiros da economia. Essa propensão à descontinuidade induz a uma luxúria legislativa-regulatória que muitas vezes é o prólogo de tragédias econômicas, pois os efeitos não intencionais são usualmente ruinosos.
É o que parece ocorrer com a Política de Conteúdo Local (PCL) para o setor de petróleo e gás. Iniciada no governo de Fernando Henrique Cardoso, na 1ª Rodada de Licitações da ANP, em 1998, e continuada pelo governo Lula, em 2003, a PCL auxiliou na consolidação de uma grande indústria fornecedora de bens e serviços no Brasil.
Nessa trajetória, importantes segmentos da cadeia conseguiram se modernizar e hoje competem internacionalmente na produção de equipamentos de alta tecnologia, o que exigiu tempo, trabalho sério e vultosos investimentos, sobretudo em P&D. Outros ramos, no entanto, ainda estão no caminho para alcançar padrões de classe mundial; e alguns se mostram inviáveis por falta de escala ou vocação para serem produzidos aqui.
A PCL tem falhas no desenho, escopo e operacionalidade que tornam seu cumprimento burocrático, complexo e custoso. Pela sistemática, na ocasião da rodada as petroleiras tinham que preencher planilhas de oferta alocando percentuais de conteúdo local e atribuir, com precisão, o peso que cada item teria nos investimentos e em que produto, num possível, num possível campo de petróleo ou gás a ser eventualmente descoberto e desenvolvido oito anos adiante. Apesar dessa incerteza, as petroleiras, na ânsia de adquirir blocos de seu interesse, não hesitaram em inflar suas ofertas, assumindo obrigações que não sabiam ao certo como cumprir.
Os fornecedores, por sua vez, declararam capacidade de prover altos índices de conteúdo local sem controlar inteiramente as condições de contorno. O governo da época, sem diagnóstico aprofundado, aceitou informações declaratórias como fato e não acompanhou o desenvolvimento da real capacidade da indústria. Ou seja, houve equívocos de todas as partes. Houve, também, o acúmulo de uma enorme massa crítica e o bom senso recomenda que não devemos abandoná-la.
O cenário mudou desde o estabelecimento da PCL. O setor ficou cinco anos sem rodadas de licitação; a Petrobras, responsável por 70% dos investimentos no upstream, viveu uma grande tormenta e o preço do barril caiu de patamar. Adicionalmente, há uma crise econômica grave e uma dura realidade fiscal.
Tudo isso torna o governo sensível às promessas de investimento das petroleiras, que o convenceram de que as exigências de conteúdo local seriam um empecilho à atratividade das novas rodadas de licitação e à viabilidade do pré-sal em um cenário de preços baixos. A PCL seria até mesmo a culpada pelas práticas pouco ortodoxas ocorridas na Petrobras. Assim, seria possível obter investimentos num passe de mágica, ao mesmo tempo em que a venda dos blocos auxiliaria no cumprimento da meta fiscal.
Nessas circunstâncias, articulações para reduzir percentuais de conteúdo local prevaleceram. Nas três rodadas de licitação a serem realizadas este ano haverá uma diminuição média de 50% nesses compromissos. Adicionalmente, a extinção da divisão entre bens e serviços pode permitir o cumprimento dos compromissos sem a compra de máquinas e equipamentos nacionais.
Não satisfeito, o governo também pretende alterar compromissos já firmados. Evidenciando que no Brasil até o passado é imprevisível, a ANP colocou recentemente em consulta pública proposta que permite reduzir o conteúdo local de contratos assinados a partir da 7ª Rodada. Pela proposta, as empresas poderiam manter os índices originalmente pactuados ou optar pelos percentuais das rodadas deste ano, substancialmente menores. A mudança afetaria a maioria dos blocos exploratórios e dos campos em desenvolvimento, como Libra e Sépia, que já pediram à ANP para não cumprir compromissos por meio do chamado waiver.
Seria essa uma forma apropriada e segura de resolver o imbróglio criado pelas disfunções da PCL? Na concretização desse precedente, quem garante que governos futuros não façam voltar os compromissos anteriores?
Renegar contratos assinados engendra imprevisibilidade. As petroleiras ficariam inseguras diante da fragilidade dessa saída e os fornecedores, que investiram bilhões na implantação e ampliação de fábricas e centros de P&D, provavelmente a questionariam juridicamente.
Parece recomendável distinguir contratos de política pública. Programas, ações e decisões tomadas pelos governos podem mudar. Compromissos contratuais, não. É preciso resistir ao impulso pronto da inconstância e, em vez de extinguir compromissos, criar meios para que possam ser cumpridos. O caminho para isso passa pelo Programa de Estímulo à Competitividade da Cadeia Produtiva do Setor de Petróleo (Pedefor), que pode instituir pontes entre as obrigações do passado e encomendas no presente.
Cabe a fornecedores e petroleiras sair da divisão obtusa em que se encontram e desinterditar o debate. Compete ao governo prover um diagnóstico confiável sobre os erros e acertos da PCL e apresentar uma proposta de política industrial moderna, com horizonte temporal, padrões de desempenho e metas de exportação. Ela precisa existir, pois há distorções macroeconômicas que impedem uma competição isonômica mesmo em alguns setores com produtividade igual ou superior a seus rivais globais. A hora é de conciliar interesses e cooperar para evitar a descontinuidade, perniciosa para todos.