Com estradas precárias, transporte marítimo cresce 10% no ano

  • 22/09/2014

SANTOS (SP) e MANAUS (AM) – As sucateadas estradas brasileiras e a falta crônica de ferrovias – desafios de infraestrutura para o próximo governo – estão dando novo fôlego à cabotagem, o transporte de cargas por mar dentro do país, que teria tudo para ser uma vocação natural do Brasil, que tem 8.000 km de costa. Este transporte vive uma explosão: apenas no primeiro semestre deste ano o setor cresceu 9,8%, enquanto a economia patinou com avanço de 0,5%. Com isso, hoje, a cabotagem tem um tamanho quatro vezes maior do que em 2001. Para mostrar o crescimento e os entraves do setor, repórter e fotógrafo embarcaram em agosto em Santos (SP) de carona no Américo Vespúcio, navio da Aliança, de 228 metros, com capacidade de 3.800 contêineres, que foi até Manaus em 17 dias, num percurso de sete mil quilômetros. A viagem é tema da série de reportagens multimídia que O GLOBO publica a partir de hoje no jornal e no site.

Nem sempre as águas são tranquilas na cabotagem. O setor, mais ecológico e econômico que os de estradas e ferrovias, sofre com o descaso com o transporte. Navegar pela costa e pelo Rio Amazonas é fácil, com navios modernos e tripulação preparada. Até a turbulência do oceano é tolerável. O nó da cabotagem está onde deveria ser o “porto seguro”: nos terminais. Sem os obstáculos, o setor poderia ser seis vezes maior, retirando 1,8 milhão de viagens de caminhões das estradas e reduzindo o custo de transporte do país, diz a Associação Brasileira dos Armadores de Cabotagem (Abac).

– O setor cresce, mas poderia ter outro patamar. É como um corredor que está desenvolvendo bem, mas veste aquela camisa de chumbo dos treinos – disse Cleber Lucas, presidente da entidade.

Porto de Salvador: estrutura de terminais ainda é entrave para transporte marítimo

Especialistas dizem que a comparação não é exagerada. A cabotagem representa apenas 0,5% dos transportes nacionais, contra 6% nos Estados Unidos, um país muito mais interiorizado, ao passo que 70% da população e da riqueza do Brasil estão a apenas cem quilômetros da costa. Por outro lado, criticam que parte deste descaso cabe aos próprios armadores, que abandonaram rotas para se concentrarem apenas nos trechos mais lucrativos. O forte controle de capital estrangeiro das empresas também é apontado como um problema, pois as companhias não teriam real interesse em desenvolver o mercado nacional. Isso é negado pelo setor, que afirma investir pesado no Brasil e estar retomando portos até então abandonados.

Nos últimos anos foi realizada uma forte renovação da frota de navios que atende a costa brasileira. Mas eles pagam mais por combustível que os caminhões e recolhem tributos que não são cobrados em uma viagem de navio à China, por exemplo. O pior, contudo, fica visível em terra firme. Na viagem realizada pelo GLOBO, ao menos cem horas foram perdidas em portos: 54 horas com o navio estacionado, esperando para atracar e outras 46 horas, com a ineficiência de alguns terminais. No total dos 17 dias, quatro foram consumidos pelos problemas.

Prazos maiores para absorver ineficiência

Em Pecém (CE), o navio teve de esperar 25 horas fundeado diante do porto para atracar. Quando finalmente estava no terminal, a produtividade de cada guindaste foi de apenas dez movimentos de contêineres por hora, um terço da média mundial. Em Salvador, uma falha num dos modernos guindastes especializados em contêineres, os portainers, fez a operação demorar o dobro do previsto. E em Manaus, segundo porto mais movimentado do país em cabotagem, a operação é toda manual, com atrasos e riscos aos estivadores, que precisam encaixar, sem a ajuda de equipamentos, os contêineres nos caminhões e no precário guindaste, que fica numa balsa sobre o Rio Negro.

Porto de Pecém, no Ceará. Espera de 25 horas – Não é incomum um terminal atrasar a previsão de operação no porto em mais de 12 horas. Isso é inadmissível, beira o amadorismo – extravasa o capitão Carlos Câmara, que comandou o Américo Vespúcio durante a viagem.

Nestes casos, o prejuízo é da empresa de cabotagem, que precisa navegar com força máxima até o próximo porto, gastando mais combustível – custo que pode chegar a R$ 100 mil por dia – ou, em casos extremos, pular uma escala. Estes atrasos são um entrave à ampliação desse mercado, que oferece custo cerca de 30% menor que as rodovias e no qual não há risco dos crescentes assaltos em terra – o país ainda não tem piratas.

Os terminais com problemas apresentam explicações. Para a Companhia Docas de Pecém, tudo vai se resolver quando chegarem os novos guindastes no fim deste ano. O Tecom Salvador afirma que o atraso resultou de um incidente elétrico, raro de se repetir. Já em Manaus, o administrador do terminal Chibatão diz que “as operações são seguras e que a produtividade é alta” e que os guindastes sobre balsas são fundamentais na região, pois o nível do rio chega a variar até 17 metros durante as secas.

Mas para as três empresas que dominam a cabotagem de contêineres – onde estão os produtos de maior valor agregado e crescimento mais acelerado – a situação não é bem assim. Além de ampliar os prazos de escalas, elas criaram o serviço porta-a-porta, embora, às vezes, o trecho de caminhão de 250 quilômetros do interior de São Paulo a Santos custe mais que os sete mil quilômetros do litoral paulista a Manaus, segundo Luiza Bublitz, diretora comercial da Mercosul Line. Mas, sem isso, seu negócio seria inviável. A cabotagem acaba sofrendo pela situação das rodovias. Segundo a Confederação Nacional do Transporte (CNT), 63,8% das rodovias tinham deficiências de pavimento em 2013.

Segundo Gustavo Costa, gerente de cabotagem da Aliança, as empresas atuam com um navio a mais por rota e prazos maiores, para dar conta dos “imprevistos”, repassando custo a clientes. – Ainda não sentimos melhorias com a nova Lei dos Portos. Se houvesse eficiência, poderíamos ter mais escalas, atendendo mais mercados – afirmou Vital Lopes, presidente da Log-In.

Para Leonardo Ferraz de Oliveira, da Lyra Navegação Marítima, que faz o transporte de granéis, qualquer perda de eficiência com problemas e burocracia afeta diretamente o setor. – O setor é muito concorrido, então todos estes problemas significam, no fim das contas, a inviabilidade de algumas rotas – disse ele, lembrando que os problemas da cabotagem são mais que conhecidos pelo governo, que pouco faz para resolvê-los.

Logística consome 13,1% da receita de empresas

Paulo Resende, especialista em logística da Fundação Dom Cabral, afirma que a vantagem do transporte marítimo ganha mais destaque diante da situação de estradas e ferrovias. Segundo um estudo do fim de 2012, a logística consome 13,1% da receita das empresas brasileiras. Se o Brasil tivesse a mesma eficiência logística dos Estados Unidos, seriam economizados R$ 83,2 bilhões por ano:

– O tempo mais longo da viagem de navio pode reduzir o custo de armazenagem.

O caos do sistema rodoviário joga clientes para os navios. Augusto Nogueira, da empresa de alumínio Novelis, já usa a cabotagem para transportar 30% de sua carga e pretende ampliar: – Não há problema em demorar mais, o importante é cumprir prazos. O caminhão pode ser mais rápido, mas a cada dia fica mais imprevisível, com problemas nas estradas e roubo de cargas.

Navegação de cabotagem precisa do triplo de documentos

  • 22/9/2014

SALVADOR e RIO – A burocracia, que no Brasil afeta todos os setores da economia, é ainda mais perversa no ambiente marítimo. O excesso de papelada trava os negócios, provoca atrasos e custos que seu principal concorrente, o caminhão, não tem. Na avaliação de especialistas, esse é um dos principais problemas da cabotagem, o transporte de cargas por mares do Brasil, tema da série multimídia do GLOBO que começou neste domingo no jornal impresso e no “site”.

Especialistas e empresas do setor confirmam: enquanto uma carga transportada por caminhão precisa de quatro documentos para atravessar o Brasil, na cabotagem são necessários 12. Só há um sistema de informações no transporte rodoviário, enquanto no transporte marítimo são quatro que, diga-se de passagem, não se comunicam. Nem mesmo iniciativas como o Porto Sem Papel do governo federal resolvem, dizem analistas, pois o programa apenas eliminou a necessidade do documento em formato físico, mas manteve o elevado número de exigências. – A quantidade de informações, documentos e dados que pedem de mim é impressionante. No caminhão é muito menor, isso afeta a concorrência – afirma Vital Lopes, presidente da Log-In, uma empresa de cabotagem.

A burocracia é um dos pontos que impedem o setor de crescer no mercado de carga fracionada, ou seja, quando um contêiner tem pequenos pacotes de diversos clientes:

– Se você for despachar algo pelo Fedex, DHL ou por algum serviço de transporte aéreo, não pedem nada. E aqui, além dos documentos, temos que pagar a alíquota cheia do ICMS, enquanto que no aéreo a taxa é de 4% – diz Gustavo Costa, gerente de cabotagem da Aliança.

Além dos custos indiretos da burocracia, há os custos diretos. Para cada nota fiscal emitida, a empresa de cabotagem precisa pagar uma Taxa de Utilização do Mercante (TUM), que remunera pelo uso do sistema, em R$ 20 por nota. Ou seja, se em um contêiner tiver pacotes de 200 clientes diferentes, serão 200 taxas a serem pagas, no total de R$ 4 mil.

Toda essa burocracia ocorre antes do navio começar a navegar. Em alto-mar, os problemas aumentam: – Há prazos que só existem para a cabotagem, como a necessidade de se fazer o pedido de combustível com 15 dias de antecedência, mesmo com o monopólio da Petrobras no segmento. E, caso o navio atrase por qualquer motivo, outro pedido precisa ser feito, gerando um trabalho extra e mudança nos preços, pois a cotação é diária. Assim, muitas vezes perdemos muito tempo no mar cuidando da burocracia – diz o capitão Carlos Câmara, comandante do navio Américo Vespúcio, da Aliança, no qual o GLOBO navegou de carona por 17 dias de Santos a Manaus.

Mas o grande problema do setor com o combustível é o preço. O óleo combustível que movimenta os navios tem cotação internacional, ao contrário do diesel, que, para controlar a inflação, é subsidiado pelo governo federal. E este é o principal insumo da cabotagem, representando cerca de 50% dos custos, pois um navio pode consumir até 70 toneladas de óleo por dia. A um preço de US$ 600 dólares a tonelada. O que equivale a um custo diário de cerca de R$ 95 mil. – Hoje o preço do óleo combustível é 30% mais caro que o valor do diesel. Não queremos subsídios, apenas isonomia em relação ao nosso principal concorrente – afirma Cleber Lucas, presidente da Associação Brasileira dos Armadores de Cabotagem (Abac).

Além disso, conta Lucas, o setor recolhe tributos que não incidem na navegação internacional (o chamado longo curso), entre eles Pis/Pasep e Cofins. Ele ainda lembra que há outros problemas, pois o Fundo da Marinha Mercante tem R$ 850 milhões administrados pelo governo federal, que não libera o dinheiro na velocidade que o setor precisa para renovar a frota fabricando navios no Brasil ou reformar embarcações. O fundo é formado pela Adicional ao Frete para a Renovação da Marinha Mercante (AFRMM), sustentada basicamente pelas rotas estrangeiras, pois há isenção para as rotas de cabotagem com origem ou destino Norte/Nordeste, um dos raros benefícios para o setor, dizem os especialistas.

Segundo o presidente da Abac, as principais iniciativas recentes do governo para desburocratizar o setor ainda não avançaram. Uma delas é a Comissão Nacional de Autoridades nos Portos (Conaportos), lançada pela presidente Dilma Rousseff no fim de 2012 dentro da proposta de se incentivar o setor de transportes do país.

Outro custo alto envolve a praticagem, segmento que reúne os profissionais que auxiliam os comandantes dos navios nas manobras dos portos, os práticos. Também em dezembro de 2012, o governo criou uma comissão para regulamentar esse serviço, considerado, por especialistas e empresas, um dos mais caros do mundo e que melhor remunera seu pessoal. Há quem diga que os práticos recebem até R$ 300 mil por mês, embora a categoria negue, admitindo ganhos que chegam à casa dos R$ 80 mil mensais, justificado pela complexidade da atividade.

A Comissão Nacional de Assuntos de Praticagem (CNAP) até chegou a avançar, propondo, em algumas situações, reduções de 80% no valor do serviço – caso do porto do Rio. Mas a categoria recorreu ao Judiciário e conseguiu suspender a negociação, com o argumento de que o objetivo da iniciativa é tabelar o serviço que, apesar de monopolista, deve seguir as regras da “iniciativa privada”.

Os armadores de cabotagem reclamam dos custos que podem inviabilizar alguns tipos de transporte: – Atuo na cabotagem de granéis, no transporte de sal de Areia Branca (RN) para o Sul. O frete do transporte do navio com oito mil toneladas, número abaixo de nossa capacidade de 217 mil toneladas, devido ao baixo calado do porto de Porto Alegre, sai por R$ 500 mil. Mas os práticos cobram pela manobra no porto da capital gaúcha R$ 80 mil, ou seja, 20% do valor total do frete. Isso inviabiliza o transporte, pois o caminhão, apesar de consumir mais combustível e poluir mais, não tem estes custos – afirma Leonardo Ferraz de Oliveira, da Lyra Navegação Marítima.

Ricardo Falcão, presidente do Conselho Nacional da Praticagem (Conapra), afirma que a questão dos preços não procede, argumentando que a cabotagem paga no Brasil menos que os navios estrangeiros. Ele cita ainda que Petrobras e Vale, que representam 80% da cabotagem do país, não reclamam dos preços.

– Os armadores de contêineres reclamam dos valores da praticagem, mas nunca abrem seus preços para vermos se o serviço é caro. O prático é a presença do estado à bordo do navio e isso incomoda essas empresas – disse Falcão.

Ele nega haver burocracia na praticagem, acusação de algumas empresas, que afirmam que isso pode atrasar por um dia a navegação no Amazonas ou em horas Sepetiba, no Rio.

O Ministério dos Transportes – que recentemente voltou a coordenar a cabotagem, que antes estava com a Secretaria Especial de Portos, em um empurra-empurra entre os órgãos do governo – disse, em nota, que o setor é estratégico para o país. A pasta afirma que libera recursos do Fundo da Marinha Mercante para a construção de embarcações, com financiamento subsidiado de até 90% do valor das embarcações, com juros com base na TJLP (atualmente em 5% ao ano) e financiamento em 20 anos.

Outra iniciativa é a isenção do AFRMM para rotas que passem pelo Norte ou Nordeste, que custa 10% sobre o valor do frete. Segundo a pasta, isso trouxe alívio de R$ 600 milhões entre 2011 e 2013.

“Estudos detalhados poderão identificar potenciais avanços no fomento ao setor, de forma a estabelecer incentivos consistentes que sejam direcionados à ampliação do transporte por cabotagem e à redução dos fretes praticados”, respondeu o ministério quando perguntado sobre formas de se reduzir a burocracia do setor.

Mesmo assim, a cabotagem cresceu 9,8% no primeiro semestre. Um dos motivos é a busca das empresas por serem mais ecológicas. João Carlos Gagetti, gerente de Logística da Moto Honda da Amazônia, disse que migrou para a cabotagem para ajudar a meta global da firma de reduzir em 30% a emissão de CO2.

– Além da redução das emissões de CO2 em torno de 20%, registramos uma economia de 5% no transporte de motocicletas em dois anos e, agora, 30% de nossa produção da Amazônia já sai por navios.

 Fonte: O Globo –  Henrique Gomes Batista

 

22/09/2014|Seção: Notícias da Semana|Tags: , , , |