Os estaleiros de construção nunca esconderam que os serviços de reparo, isoladamente, não são suficientes para sustentar a manutenção de suas atividades. Com a crise do setor, sentida a partir de 2014, essa foi uma das frentes buscadas para a sobrevivência das instalações. O setor de petróleo e gás e a navegação de cabotagem são as principais apostas dos estaleiros de maior porte que executam reparos, enquanto não são viabilizadas novas encomendas. A avaliação é que o projeto de lei da cabotagem (PL 4.199/2020) não oferece garantias de que haverá um aumento substancial de demanda por reparos.
Em 2020, alguns estaleiros brasileiros, como o Atlântico Sul (EAS) apresentaram resultados positivos nos serviços de reparo e manutenção. A presidente do EAS, Nicole Terpins, conta que havia uma perspectiva de crescimento das atividades que se confirmou ao longo do ano. “A partir do segundo semestre, verificamos um aumento significativo na demanda por serviços de reparos”, destaca Nicole.
Nicole analisa que, independentemente da pandemia e da consequente retração econômica no ano passado, o EAS observou crescimento, tanto na navegação de cabotagem quanto na navegação de apoio marítimo, o que impacta na procura por reparos. “Verificamos um aumento na demanda por reparos de embarcações, tanto emergenciais, como para docagens de classe, possivelmente postergadas durante a pandemia”, diz.
Além das apostas para ativos dos setores de petróleo e de cabotagem, o EAS vê o apoio portuário e o apoio offshore como segmentos potenciais para serviços de reparo e manutenção. Já upgrades e conversões, segundo Nicole, também devem estar na agenda. Ela indaga, porém, se essas oportunidades serão realizadas no Brasil ou no exterior.
Atualmente, o EAS é demandado principalmente por docagens de classe e reparos emergenciais. “Em outubro de 2020, iniciamos nosso primeiro projeto de docagem, após um ano paralisados. Após, seguiram mais dois”, destaca a presidente do estaleiro. O EAS acredita em novas demandas de reparo no horizonte provenientes do programa BR do Mar, porém julga importante que a norma incentive o desenvolvimento desse mercado, sem criar reservas.
Nicole sugere que se estabeleça um contexto mais apropriado para a realização de reparos no Brasil, em especial, por meio da utilização do Adicional ao Frete para Renovação da Frota de Marinha Mercante (AFRMM), tanto para embarcações brasileiras como estrangeiras. O EAS realizou adaptações em suas instalações que eram necessárias, mas sem a realização de investimentos relevantes. “Criatividade, mudança de layout, alteração de determinados equipamentos e adequação de procedimentos à dinâmica acelerada do reparo foram responsáveis por um incremento significativo da produtividade do EAS nessa atividade”, revela.
O diretor de desenvolvimento de negócios da Ecovix, Luiz Fernando Pugliesi, conta que a Ecovix tem conversado com diversos players no mercado e apresentado propostas para serviços de reparo e manutenção. Contudo, pelas dimensões do dique e características do Estaleiro Rio Grande (ERG), existe a percepção de que o mercado acaba ficando mais restrito. “Temos trabalhado forte na redução de custos, mas temos um limite operacional que precisa ser respeitado. Entendemos, porém, que para embarcações de grande porte, somos uma excelente alternativa. Continuaremos trabalhando para melhorar nossa competitividade e atrair serviços para o ERG”, destaca Pugliesi.
Pugliesi considera que os setores de petróleo e gás e de cabotagem naturalmente são os que demandam mais serviços de reparação, por ter a maior frota. Segundo o diretor, a demanda existe, mas o desafio é ainda a questão do custo dos estaleiros brasileiros. Ele deu como exemplo os reparos dos petroleiros da Transpetro, que são navios interessantes para os estaleiros nacionais pelas dimensões e quantidade de serviços necessários, mas que acabam indo para a Ásia, pois a licitação é internacional. A avaliação é que o chamado Custo Brasil emperra o desenvolvimento desse setor.
“Embora haja um fator de correção utilizado para amenizar as diferenças de preço, ainda estamos longe de ser competitivos frente aos asiáticos, pelas mesmas razões que as obras de construção acabaram indo todas para a Ásia”, analisa Pugliesi. Para outros tipos de embarcações, a leitura da Ecovix é que existe demanda, mas que rebocadores e barcos de apoio marítimo, que são de portes menores, ficam mais distantes da realidade para um estaleiro do tamanho do Estaleiro Rio Grande.
Em 2020, o ERG não realizou docagens, embora tenha apresentado alguns orçamentos para o setor. “Entendemos que temos feito um bom trabalho na redução de custos e isso nos dará melhores condições competitivas. Em 2021, certamente realizaremos reparos”, analisa o diretor de operações, Ricardo Avila. Ele destaca que o estaleiro tem uma instalação em pleno funcionamento e que investimentos são frequentemente necessários para atender a esse mercado. “Nosso maior desafio realmente é a competição com estaleiros menores e com os preços internacionais”, frisa.
A Ecovix avalia que, naturalmente, o aumento da frota de embarcações de cabotagem, objetivo maior do programa BR do Mar, resultará em maior demanda para os estaleiros. Contudo, o entendimento é que essa demanda deva se consolidar a médio e longo prazo. Para a empresa, a possibilidade de afretamento de navios estrangeiros pode oferecer também alguma dificuldade para os estaleiros nacionais, pela natural e dura competição com os estaleiros mundiais.
O Estaleiro Mauá (RJ) classifica 2020 como tendo sido um ano extremamente desafiador, tendo associado, para o mercado de petróleo e gás, a queda do preço do barril e a pandemia da Covid-19. Nesse cenário, houve inclusive a postergação dos prazos de inspeções obrigatórias para a manutenção da classe de embarcações. O perfil dos serviços precisou então ser modificado, ampliando contratos para conversões, upgrades e desmobilizações para saída de contrato.
No segundo semestre, a diretoria do estaleiro observa que a retomada das licitações da Petrobras influenciou as atividades de maneira contundente, com reativação de sondas e embarcações especializadas de apoio às operações offshore. “Com o crescimento das demandas, o Estaleiro Mauá conseguiu, mesmo no cenário desafiador, aumento significativo no faturamento e diversidade de clientes”, destaca o Mauá. O estaleiro decidiu investir na manutenção e modernização de seus ativos e na melhoria de seus processos, implementando as adequações para ISO 9001 e ISO 14001 na versão 2015.
Essas certificações foram obtidas após as auditorias e comprovação da excelência em seus processos de gestão e meio ambiente para todas as suas atividades de reparo, base de apoio logístico e terminal portuário. O Estaleiro Mauá acredita que esse é um diferencial, na medida em que possibilita um posicionamento de destaque no mercado, principalmente para as empresas operadoras do segmento de petróleo e gás, as quais requerem alto nível de gestão nas atividades de seus fornecedores.
Para 2021, a equipe do Mauá observa que o cenário mantém a tendência em conversões, upgrades e retorno das docagens de classe. O estaleiro vê como segmentos potenciais a reativação e/ou adequação para sondas e plataformas, construção de módulos para plataformas, bases logísticas e desmantelamento, bem como upgrade e conversão de embarcações de apoio marítimo.
Outra tendência identificada, incluindo os processos de conversão de embarcações adquiridas no mercado internacional, é o BR do Mar. A percepção é que o programa tem forte potencial para reparos e operação portuária, alinhado à capacidade do Estaleiro Mauá. Em contrapartida, existe o receio de que haja redução drástica de oportunidades de construção de navios de cabotagem com a flexibilização do afretamento de embarcações estrangeiras, o que afastaria a possibilidade de retomar a carteira de construção.
A divisão de estaleiros da Wilson Sons acredita que 2021 será um ano com mais demanda por serviços de reparos. A avaliação é baseada num possível incremento das docagens, inclusive para terceiros, no Guarujá (SP). O diretor-executivo dos estaleiros da Wilson Sons, Adalberto?Souza, contou que, no começo da pandemia, houve uma flexibilização por parte das autoridades, em alguns meses, das docagens obrigatórias de cinco anos. “Houve um aumento de despesas no meio de pandemia e o estaleiro sofreu bastante. No último trimestre de 2020, começou a melhorar. Prevemos que [2021] será um ano com a casa cheia de manutenção”, projeta Souza.
O estaleiro percebeu uma retomada dos serviços de reparo a partir do último trimestre de 2020. Além das embarcações do grupo, há clientes como a Saam Towage fazendo docagem e outros armadores com quem o estaleiro negocia, como a Svitzer. No segmento de apoio marítimo, existem alguns projetos de adaptação e/ou conversão de embarcações que estão sendo avaliados.
Para competir com estaleiros do Rio de Janeiro, a Wilson Sons aposta na estabilidade do grupo, histórico de entregas e qualidade dos serviços. Souza reconhece que a distância do polo naval do Rio de Janeiro acirra a disputa comercial e leva o estaleiro a investir cada vez mais em produtividade para atrair embarcações, que costumam levar cerca de 20 horas de deslocamento entre Rio e São Paulo.
A Dock Brasil avalia que a expectativa de crescimento para serviços de reparo e manutenção em 2020 não se confirmou. “Infelizmente a pandemia impactou nosso mercado, principalmente nos meses de março a agosto”, relata o diretor da empresa, Marcelo Mello. Com a pandemia, a Marinha permitiu a postergação dos certificados de classe das embarcações de forma mais simples, retirando a obrigatoriedade de docagens em ambiente seco desde março do ano passado até março de 2021.
Além disso, Mello conta que a pandemia aumentou os custos de reparo. “Trabalhamos com um número maior de colaboradores por obra devido a baixas por saúde, aumentamos o número de horas extras, aumentamos os gastos com EPI (equipamentos de proteção individual), implementamos procedimentos adicionais de segurança, dentre outros”, detalha o diretor da Dock Brasil.
Para atender a serviços de reparo, a Dock Brasil investiu na dragagem de berços de atracação, canal de acesso e cava para operação do dique flutuante. A empresa adquiriu um guindaste e construiu três carreiras de transferência para posições de docagens em terra, passando a operar um sistema de transferência para embarcações até 3.000 toneladas.
Nas instalações da Dock Brasil, a maior demanda por reparo continua sendo dos barcos de apoio offshore. Mello diz que a empresa vem recebendo cotações em 2021 para reparos de embarcações portuárias e upgrades e/ou conversões. A expectativa da empresa é que ocorra um aquecimento desse mercado.
A Dock Brasil realizou 23 docagens em 2020. Mello destaca que, ao receber o sistema de transferência para docar em terra embarcações com até 3.000 toneladas, em dezembro de 2020, a empresa projeta docar 45 embarcações entre apoio portuário, offshore e upgrades/conversões. Sobre o BR do Mar, a empresa ainda não enxerga no horizonte novas demandas de reparo provenientes do programa BR do Mar. “Ainda não estamos contando com essa demanda e esperamos que o projeto cresça”, afirma.
O diretor do departamento de navegação e hidrovias da Secretaria Nacional de Portos e Transportes Aquaviários do Ministério da Infraestrutura (SNPTA/Minfra), Dino Batista, observa um movimento diferenciado ao que, no início das discussões do programa BR do Mar, há cerca de dois anos, o governo ouvia quase em uníssono: que a indústria naval brasileira não conseguiria se adaptar para fazer reparo de embarcações.
“Nem todos que se prepararam para a construção, em especial para navios de transporte de petróleo, conseguirão se adaptar ao mercado de reparos, mas já temos visto movimento nesse sentido. Assim como temos visto movimentos para se preparar para trabalhar o desmantelamento de embarcações”, disse Batista no final de fevereiro, durante o evento Summit BR do Mar, realizado pela MLAW Academy e promovido pelo grupo Tribuna.
O Ministério da Infraestrutura afirma que o BR do Mar não traz impacto negativo para a indústria naval que constrói embarcações para navegação de cabotagem. Batista disse no evento que as críticas de que o programa prejudica a indústria naval são feitas sem muita base, considerando os resultados dos últimos 11 a 12 anos da construção de navios de cabotagem em estaleiros nacionais.
Batista, que já presidiu o Conselho Diretor do Fundo da Marinha Mercante (CDFMM), destacou que a construção naval brasileira tem um grande potencial e respondeu bem aos incentivos e às políticas que a atual lei trouxe, porém de forma distinta entre seus diversos nichos. Ele citou os segmentos de rebocadores e barcos de apoio marítimo, com embarcações construídas com eficiência no Brasil, além de uma grande quantidade de embarcações voltadas para navegação interior com recursos do Fundo da Marinha Mercante (FMM) e das contas vinculadas oriundas do AFRMM.
Na cabotagem, porém, ele lamentou que foram construídas somente quatro embarcações em pouco mais de uma década, um desempenho quase “pífio”. Batista comparou que a navegação interior nesse período obteve desempenho destacado para embarcações destinadas ao transporte de produtos agrícolas e que o programa de renovação de casco duplo na Amazônia para transporte de combustíveis também conseguiu sucesso. “Estamos conseguindo proteger essa parcela da indústria naval que deu certo. A cabotagem não teve o mesmo desempenho dos demais segmentos. Na cabotagem de carga geral, contêineres e de granéis sólidos, excluindo petróleo, tivemos a construção de quatro embarcações nos últimos 11 anos”, disse Batista.
O diretor do ministério ressaltou que o BR do Mar propôs desvincular a política da navegação de cabotagem da política de construção naval para cabotagem. Segundo Batista, é preciso desfazer um “nó” para que a cabotagem possa crescer, sem algumas amarras que hoje existem na lei. Ele reconhece que, ampliadas as possibilidades de afretamento de embarcações, implica menor quantidade necessária de compra ou construção de embarcações. “Buscamos um programa equilibrado, inclusive para a indústria naval, que protegesse a indústria naval onde ela tem dado certo e trouxesse incentivos para novos segmentos dessa indústria”, frisa.
Para o Sindicato Nacional da Indústria da Construção e Reparação Naval e Offshore (Sinaval), o BR do Mar não dá garantias suficientes de que vai gerar aumento de demandas para reparo naval no Brasil. O vice-presidente executivo do Sinaval, Sérgio Bacci, observa que os reparos realizados em estaleiros nacionais são raros e ocorrem principalmente quando os armadores precisam de serviços emergenciais. A avaliação do sindicato é que o programa não vai impedir que os armadores de cabotagem enviem seus navios para reparo no exterior. “Quando chegar a época do reparo de classe, a empresa vai pegar um navio operando fora do Brasil, enviar para cá em substituição e mandar o navio para reparo lá fora”, lamenta Bacci.