A possibilidade de novas encomendas aos estaleiros nacionais nos próximos anos trará novas exigências para a indústria, seguindo a tendência de descarbonização no transporte marítimo mundial. As mudanças, cada vez mais, englobam todo o ciclo das embarcações, da concepção ao desmantelamento, passando pela compatibilidade de equipamentos com combustíveis alternativos e novos métodos construtivos. A Transpetro projeta que as novas embarcações de sua frota serão entregues mais sustentáveis e que haverá uma redução da pegada de carbono, atendendo às determinações da Organização Marítima Internacional (IMO).
O edital das quatro primeiras das 25 embarcações previstas no programa de renovação e ampliação da frota da Transpetro (TP25) estabeleceu especificações técnicas para incorporação de um pacote de equipamentos mais eficientes em termos de consumo, com a possibilidade de utilização de combustíveis alternativos.
O diretor de transporte marítimo da Transpetro, Jones Soares, garante que esses navios atenderão rigorosamente a estratégia imposta pela IMO, de reduzir em 70% as emissões de gases de efeito estufa (GEE) até 2040 e de zerá-las até 2050. Ele explica que as futuras embarcações virão com pacote de tecnologias existentes que já reduziram emissões de outras unidades, como uso de tintas anti-incrustantes.
“Prevemos que os motores principais dessas embarcações terão capacidade de funcionar com combustíveis alternativos. Tudo isso vai fazer com que o navio do TP25 seja muito mais ‘verde’ e atenda ao que a IMO está colocando como meta para todas as embarcações”, acrescenta Soares. Em 2023, a companhia diminuiu em mais de 8% as emissões dos navios que opera, a partir de investimentos feitos nos últimos anos para reduzir a pegada de carbono da frota.
Soares ressalta que os navios de cabotagem estarão prontos para rodar, por exemplo, com etanol ou metanol. Ele destaca que os estudos feitos até o momento indicam que, além das opções em testes de viabilidade globalmente, como hidrogênio e amônia, o Brasil é competitivo com o uso de biocombustíveis. O diretor da Transpetro lembra que o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), principal agente financeiro do Fundo da Marinha Mercante (FMM), estuda a possibilidade de taxas mais atrativas para o financiamento de projetos com pegada mais verde.
O presidente da Transpetro, Sérgio Bacci, pondera que ainda não houve um aprofundamento por parte do FMM das taxas para financiar projetos de ‘navios verdes’. Se a Transpetro optar pelo FMM, essa questão não será levada em conta porque serão aplicadas as condições vigentes atualmente. Se esses navios forem construídos no exterior, existem alguns fundos fora do país que levam em consideração essas questões e podem ter taxas atrativas. “Depende muito de onde será feita [construção dos navios] e de qual fundo será utilizado para poder viabilizar a construção”, frisa Bacci.
O diretor comercial do Mauá, Arialdo Félix, considera a descarbonização no setor marítimo um aspecto crucial e que está cada vez mais presente nas discussões sobre novos projetos de construção naval. Segundo Félix, o estaleiro está preparado para atender às novas regulamentações estabelecidas, garantindo que os projetos estejam alinhados com as normas ambientais mais rigorosas.
“Acreditamos que a adaptação a essas novas regras não apenas é necessária, mas também representa uma oportunidade para inovar e desenvolver soluções sustentáveis que beneficiem tanto o meio ambiente quanto a eficiência operacional das embarcações que construímos”, diz Félix.
O diretor operacional da Ecovix, Ricardo Ávila, considera que a descarbonização no setor marítimo terá pouca influência no curto e no médio prazo no que tange à construção em si. Ele percebe que sistemas mais eficientes ou mesmo que utilizem outras tecnologias como a eletrificação de alguns componentes que outrora queimavam hidrocarbonetos influenciam a indústria de máquinas e equipamentos.
“O escopo de um estaleiro se altera pouco, tendo que montar um equipamento elétrico ou um a gás, por exemplo. No longo prazo, talvez tenhamos que ter processos mais eficientes de construção para produzir embarcações, talvez mais leves, de materiais diferentes. Hoje, não vejo muita mudança nisso”, pondera Ávila.
A descarbonização também tem transformado significativamente a atuação das associadas da Câmara Setorial de Equipamentos Navais e Offshore da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (CSENO). O presidente da CSENO/Abimaq, Leandro Nunes Pinto, afirma que as empresas estão cada vez mais focadas em desenvolver e implementar tecnologias que reduzam as emissões de carbono, seja por meio de melhorias na eficiência energética, uso de fontes de energia renovável, seja pela adoção de práticas mais sustentáveis em suas operações.
Ele destaca que a CSENO tem promovido essa transformação ao incentivar a inovação e a pesquisa, além de facilitar o acesso a informações e recursos sobre as melhores práticas de descarbonização. A entidade tem atuado em conjunto com a Sociedade Brasileira de Engenharia Naval (Sobena) e com o Cluster Tecnológico Naval e Offshore do Rio de Janeiro (Cluster RJ), promovendo um diálogo constante e colaborativo.
“A CSENO, em colaboração com a Sobena e o Cluster RJ, busca alinhar as iniciativas de descarbonização com as necessidades e demandas do setor naval e offshore, garantindo que a indústria brasileira esteja na vanguarda das práticas sustentáveis”, conta. Os membros da câmara também participaram recentemente de fóruns sobre sustentabilidade e transição energética. O presidente da CSENO considera que essas parcerias têm sido fundamentais para o desenvolvimento de soluções tecnológicas avançadas e para a troca de conhecimentos e experiências entre os principais atores da indústria. “Esta mudança não apenas ajuda a cumprir as metas ambientais, mas também melhora a competitividade das empresas no mercado global, onde a sustentabilidade é cada vez mais valorizada”, afirma Pinto.
A Belov identifica oportunidades significativas para seu estaleiro em diversos segmentos no cenário atual, o qual considera marcado por uma crescente conscientização sobre a importância da sustentabilidade e eficiência. O diretor de obras e serviços subaquáticos da Belov, Juracy Gesteira Vilas Bôas, destaca que as embarcações híbridas e elétricas emergem como o futuro da navegação, refletindo o compromisso do setor com a redução de emissões.
“O último ano foi marcante para nosso estaleiro. Após a entrega anterior dos dois DVS (embarcações de mergulho raso), entregamos os dois empurradores híbridos e ganhamos um prêmio internacional por esse feito, consolidando nosso compromisso com a excelência e a inovação e demonstramos nossa capacidade de liderar em tecnologia e design”, avalia Vilas Bôas.
A Belov recebeu um prêmio pelos primeiros empurradores híbridos do planeta, construídos em suas instalações. “Nesse segmento, nosso estaleiro não apenas vê um potencial de crescimento, mas também uma oportunidade de liderar, integrando inovações que definirão o futuro da construção naval”, afirma Vilas Bôas. O carro-chefe do estaleiro é a construção de embarcações especiais, como os empurradores híbridos e os também premiados DVS (DP-2, diesel-elétricos e propulsão principal de hidrojato), que receberam dois prêmios internacionais por suas inovações.
O grupo projeta que as embarcações de apoio offshore representam um campo promissor, dada a retomada dos investimentos em exploração de petróleo e gás, aliada ao fato de a Petrobras ter promovido licitações com embarcações exclusivamente de bandeira brasileira e com possibilidades de construção com financiamento do FMM, que tem juros competitivos. Vilas Bôas também chama a atenção para as grandes conversões de embarcações, que têm trazido ao estaleiro grandes resultados, a exemplo de um navio convertido em um dique flutuante, um PSV convertido em um OTSV (apoio a terminais oceânicos) e um segundo navio convertido em uma draga.
Os dois empurradores híbridos lançados pela Belov, na visão da empresa, reforçam o compromisso com a sustentabilidade. Vilas Bôas acrescenta que a conversão do PSV em OTSV, embarcação especial utilizada nos terminais offshore e que possui dois carretéis para mangotes de produção de petróleo, foi entregue com sucesso no último ano e tem sido elogiada como uma das melhores embarcações da frota.
As docagens e reparos navais também vão bem, com todas as janelas do dique flutuante já preenchidas até o final de 2024. O estaleiro na Bahia também realizou mais de 15 docagens para reparos e manutenções, somente esse ano. “Esses números não são apenas indicadores de nosso sucesso, mas também reflexos de nossa dedicação em moldar o futuro da construção e reparo naval”, diz o diretor.
Vilas Bôas conta que a estratégia vem sendo trazer novas construções, focando em embarcações modernas e tecnológicas. A previsão é que, nos próximos dois meses, o estaleiro entregue uma draga que foi convertida a partir de um casco de navio e que trabalhará na retirada de insumo para produção de fertilizantes. Ele explica que essas conversões agregam tecnologia ao estaleiro, visto que, via de regra, envolvem o desenvolvimento de disciplinas pouco utilizadas. “Temos um apetite nato em criar e esses projetos nos permitem esse desenvolvimento interno”, afirma Vilas Bôas.
Para os próximos anos, a Belov trabalha para expandir as fronteiras com um foco em embarcações especiais, principalmente as híbridas e elétricas. A estratégia é colaborar estreitamente com parceiros estratégicos, incluindo centros de pesquisa, para desenvolver tecnologias que atendam às necessidades atuais do mercado, mas também antecipem as demandas futuras, em direção a um futuro mais sustentável e eficiente.
A Belov acredita que o potencial para novos projetos reside principalmente na capacidade de inovar e na visão de sustentabilidade. Villas Bôas diz que o grupo está motivado com as possibilidades de expansão das ofertas de embarcações híbridas e elétricas, bem como de desenvolvimento de soluções inovadoras que atendam às crescentes demandas por eficiência e redução de impacto ambiental.
Para aumentar eficiência e capacidade de produção, o estaleiro investiu em recentes em melhorias, equipamentos e processos, com a aquisição de tecnologia de ponta e na implementação de práticas de produção mais limpas, a fim de reduzir o impacto ambiental das operações. “Os desafios que enfrentamos, desde a adaptação às normas ambientais em constante evolução até a capacitação de uma força de trabalho qualificada, são complexos. No entanto, esses desafios também representam oportunidades para inovar”, enfatiza Vilas Bôas.
O diretor afirma que a Belov busca aliar o crescimento econômico às práticas ambientais sustentáveis em todas as operações. “Não é à toa que resolvemos projetar, construir e operar, pela primeira vez no mundo, embarcações DP-2 com propulsão principal em hidrojato movidos a motores elétricos, utilizando o sistema diesel-elétricos. Assim como os primeiros empurradores híbridos do planeta. Inovações que trouxeram energia mais limpa e que nos renderam três prêmios internacionais e que nos orgulhamos bastante com o resultado”, celebra Vilas Bôas.
A Belov avalia ser possível que a mão de obra especializada fique bastante escassa, considerando a recente licitação da Transpetro, simbolizando, porém, uma nova era de oportunidades para o setor naval brasileiro, prometendo um ciclo de encomendas que pode revitalizar a indústria. “Diante dessa perspectiva, nosso estaleiro tem se preparado para atender a essa demanda crescente, graças aos investimentos estratégicos em capacitação de mão de obra e infraestrutura”, revela Vilas Bôas.
A Wilson Sons conclui, em agosto, a série de seis rebocadores da divisão de rebocadores da empresa com tecnologia mais sustentável, modelo 2513, inovadora no Brasil com a instalação entre outros do padrão Tier III da Organização Marítima Internacional (IMO). O diretor-executivo de estaleiros da Wilson Sons, Adalberto Souza, conta que o estaleiro tem em carteira uma série nova de rebocadores, modelo 2312, de 70 toneladas de bollard pull (tração estática), na qual manterá o Tier III, além dos serviços de docagem.
O estaleiro do grupo realizou uma série de docagens, com destaque para o navio gaseiro Forte Copacabana, da Elcano. Foi a primeira vez que a empresa brasileira que opera na cabotagem realizou a docagem deste tipo de embarcação, com 124 metros de comprimento, largura de 17,6 metros e peso de 6.940 toneladas, o que envolveu cerca de 300 profissionais e foi uma das maiores já atendidas pelo grupo.
Por se tratar de um navio gaseiro, foi necessário garantir na operação a certificação Gas-Free (isento de gases combustíveis), antes de o navio entrar no dique do estaleiro, além de uma série de cuidados de alto padrão adotados na docagem, exigidos por meio das NRs (normas regulamentadoras) de segurança 33 e 34, para entrada e execuções de trabalhos dentro dos tanques. O estaleiro trabalha ainda na finalização do projeto de empurradores fluviais para a J&F, grupo que atua em áreas como alimentos, energia, mineração e celulose, que também possui terminal portuário.
Souza observa que rebocadores, empurradores fluviais e PSVs (transporte de suprimentos) são os segmentos mais viáveis para novos projetos de construção nos próximos anos. Na avaliação do estaleiro, a mão de obra especializada será o principal desafio para a indústria conseguir viabilizar caso esses projetos do setor se confirmem. O diretor avalia que a falta de mão de obra para construção naval é uma possibilidade real, se houver uma mobilização mais relevante dos projetos da Transpetro e da Petrobras, devido ao longo prazo que o setor conviveu sem novas contratações de navios.
Outra tendência importante para projetos futuros, a qual identifica o diretor da Wilson Sons, são movimentos por parte dos principais fabricantes de motores no desenvolvimento de combustíveis alternativos, com destaque para o etanol entre as opções em estudo e que têm grande disponibilidade no Brasil.
Atualmente, a Wilson Sons investe na manutenção de seus estaleiros. Os dois estaleiros da companhia, no Guarujá (SP), totalizam 39 mil metros quadrados, sendo especializados na construção, conversão, manutenção e reparo de embarcações. A empresa conta com um dique seco, no complexo portuário de Santos. A companhia considera ter como diferencial operacional para executar os serviços de docagens de diferentes embarcações, de forma simultânea, a comporta intermediária do sistema de diques. A principal função desses equipamentos é proporcionar flexibilidade operacional, permitindo o movimento de embarcações e a capacidade de alagar o dique de forma parcial, conforme a necessidade dos serviços.
Em seu portfólio recente, a Empresa Brasileira de Reparos Navais (Renave) realizou docagens, reparo, conversões e outros serviços. Entre as obras, a conversão de uma barcaça graneleira, com instalação de superestrutura, tratamento em mais de 50 mil m² em superfícies diversas e substituição de mais de 1,4 mil toneladas de aço. Outro destaque foi a docagem com instalação de sistema de monitoramento de água de lastro em diversos navios, sendo alguns da Transpetro. O estaleiro também participou da fabricação de bobinas para umbilicais.
Recentemente, a Seagems (antiga Sapura) obteve duas prioridades do FMM para a modernização dos PLSVs Topázio e Diamante, no Renave. O estaleiro também realizou a docagem e reparos diversos em várias embarcações offshore, para armadores como DOF, CBO e Maersk. “Percebemos que o porte e especificidades das embarcações de offshore têm sido incrementados nos últimos tempos, por demandas mais complexas deste mercado. Cremos ser uma tendência mundial e caminhamos firmemente engajados para acompanhá-la”, relata o superintendente do Renave, Luiz Eduardo Campos de Almeida.
No final de junho, o navio tanque (NT) Almirante Gastão Motta chegou ao cais do Renave (RJ), onde passa por uma revitalização. De acordo com o estaleiro, a embarcação da Marinha do Brasil seguiu para o dique no dia 2 de julho e a previsão é que a unidade permaneça por cerca de 135 dias no estaleiro. A Renave venceu a licitação para a prestação dos serviços de engenharia referentes à docagem e desdocagem do navio, reparação naval com restabelecimento da integridade estrutural da embarcação. O valor que consta no processo é da ordem de R$ 18,6 milhões.
O pacote que consta no edital incluiu ainda a reparação e/ou substituição dos tanques de colisão AV e AR, do sistema de proteção catódica, manutenção e/ou substituição das válvulas de fundo e válvulas dos sistemas da embarcação. A revitalização também compreende a substituição de trechos de redes de diversos sistemas do navio, preparação de superfícies, pintura e manutenção mecânica da linha de eixo, hélice, bosso, sistema da Hélice de Passo Controlado (HPC) e engrenagem redutora do navio.
A licitação foi lançada em agosto passado e relançado em dezembro pela Empresa Gerencial de Projetos Navais (Emgepron), tendo sido realizado em modo de disputa fechado e abranger docagem e desdocagem do navio, com a reparação naval para restabelecer a integridade estrutural.
Recentemente, a Renave concluiu uma dragagem importante no entorno do estaleiro, aumentando o calado para recebimento de navios maiores. “Nossos investimentos são constantes, por necessidade de acompanhamento da demanda e modernização dos processos. Novos e maiores equipamentos de carga foram instalados, adquirimos novas bombas de hidrojateamento e maquinário em geral”, destaca Almeida.
Na visão da empresa, a competitividade da indústria naval no Brasil é prejudicada por políticas protecionistas estrangeiras, que restringem oportunidades, aliadas à falta de uma política similar para a própria proteção da indústria local. Almeida também cita dificuldades portuárias, alfandegárias e de outros segmentos, que inibem negócios de fora do país, além da carência de mão de obra especializada, com falta de renovação e de investimento na sua formação.
Além dos reparos, o estaleiro já enxerga oportunidades ligadas ao descomissionamento e desmantelamento de embarcações. “Apesar dos enormes óbices para esta empreitada, principalmente no aspecto ambiental, mas para os quais estamos preparados, esperamos muitas oportunidades neste nicho, pelo envelhecimento da frota de plataformas e outras unidades flutuantes”, projeta Almeida.