A competição com atividades mais rentáveis, legislação incipiente e incertezas quanto a licenciamento e requisitos para atendimento de exigências para gestão ambiental do coral-sol e NORM estão entre as ameaças para que o descomissionamento, o desmantelamento e a reciclagem de estruturas marítimas se consolidem no Brasil. A avaliação faz parte do diagnóstico elaborado, ao longo de 2023, por um grupo de trabalho formado por representantes de estaleiros, da Petrobras e de outros segmentos da indústria, com a visão de entidades e agentes setoriais envolvidos com a construção e o reparo naval até 2050.
O presidente-executivo da Associação Brasileira das Empresas da Economia do Mar (Abeemar), João Azeredo, ressalta que, entre os pontos positivos, está a capacidade instalada dos estaleiros em toda a costa, com diferentes possibilidades de métodos de desmantelamento, como em diques e em carreiras. Ele destaca que o país tem experiência e mão de obra capacitada na construção naval, que vive um momento de retomada, além de contar com o interesse da indústria siderúrgica.
A matriz swot do GT aponta, porém, o curto histórico de desmantelamento, sobretudo com embarcações de grande porte. Para unidades de maior porte, como FPSOs, há restrição de disponibilidade de diques, que sempre vão competir com obras de construção naval. Outra ‘fraqueza’ listada no diagnóstico é a falta de legislação aplicada para revenda de bens alienados e resíduos perigosos, assim como restrições jurídicas e financeiras já que grandes estaleiros tomaram calote bilionário da Sete Brasil. Na questão do licenciamento, poucos estaleiros possuem certificação de órgão ambiental estadual para desmonte.
Azeredo, que também é vice-presidente do Sindicato Nacional da Indústria de Construção e Reparação Naval e Offshore (Sinaval), reitera a necessidade defendida pelo setor para que essa indústria conte com uma política de Estado sólida. O objetivo é garantir, entre outros pontos, a previsibilidade de encomendas, a criação de mecanismos para aumento da competitividade para redução de assimetrias, estabelecendo a reserva de bandeira para embarcações que operam na cabotagem e a criação de indicadores e métricas de desempenho.
“É importante criar uma política pública e avaliá-la ao longo do tempo para adequá-la”, afirmou durante workshop promovido, em outubro, pelo Cenpes/Petrobras, em conjunto com o Centro de Estudos para Sistemas Sustentáveis da Universidade Federal Fluminense (CESS/UFF). Azeredo lembrou que os países com indústria naval forte, como os da Ásia, contam com apoio de seus governos, assim como os Estados Unidos, que contam com uma lei protecionista (Jones Act), desde a década de 1930, mesmo sendo um país historicamente liberal.
Uma das certezas, segundo Azeredo, é que a indústria naval não pode mais ficar dependente exclusivamente de um único cliente. Para diversificar a carteira, os estaleiros também olham para as demandas da Marinha do Brasil e para o surgimento do mercado de eólicas offshore, que ainda depende de regulamentação e deve levar alguns anos para se desenvolver no país. “A carteira sendo anunciada não é garantia de que tudo vá para o Brasil”, pondera Azeredo.
A preocupação ambiental, em particular com os recifes de coral-sol, gera restrição sobre o tempo que as embarcações podem permanecer nos cais para realizar procedimentos como a retirada de NORMs e água oleosa. Hoje, órgãos como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e agências estaduais impõem restrições de tempo nas áreas de cais.
Azeredo explica que a prática de lavagem dos tanques dos FPSOs pelas operadoras antes de enviá-los aos estaleiros é uma prática pertinente. Os FPSOs chegam aos estaleiros com tanques cheios de água oleosa e pouco calado para acomodação no dique seco. A avaliação é que a viabilidade de utilizar água de lastro para a limpeza dos tanques, em vez de água oleosa, pode reduzir as limitações associadas a essa prática.
Outro ponto importante é que, nos editais recentes, as informações sobre as áreas com NORM não estão claras para os estaleiros, sendo possível obter tal informação somente quando a plataforma chegar na instalação. Segundo Azeredo, isso afeta a previsão de custos e o cronograma do dique seco, aumentando o risco e levando à desistência dos estaleiros brasileiros.
A Turquia, por exemplo, não impõe exigência de NORM para as unidades. O GT sugeriu a participação do Conselho Nacional de Energia Nuclear (CNEN) para aprimorar ou criar normas e licenças para o tratamento de normas em plataformas. Outra opção discutida seria as operadoras incluírem informações sobre normas junto ao IHM (Inventário de Materiais Perigosos) e áreas afetadas.
Um relatório da Associação Internacional de Produtores de Petróleo e Gás (IOGP, em inglês) mapeou, entre seus membros, aproximadamente 35 FPSOs com idade para chegar ao final do ciclo de produção em menos de 10 anos. O levantamento inclui empresas como Petrobras, BP, Chevron, Shell, Petronas, TotalEnergies, Repsol, ExxonMobil e SBM Offshore.
Desse total, 15 estão instaladas na América Central e América do Sul. Considerando outras companhias que não estão nesse grupo, esse número pode dobrar. A percepção é que o Brasil está entre os maiores mercados de descomissionamento mundial e com grande potencial de subir no ranking, no qual está atrás dos Estados Unidos e da região do Mar do Norte.
A SBM Offshore avalia que essa ‘próxima onda’ de descomissionamento, nos próximos nove a 10 anos, é um tempo curto quando se fala nesse tipo de atividade, na qual os projetos precisam ser analisados com bastante antecedência e bem planejados. O responsável pela divisão global de descomissionamento da SBM, Marcelo Dourado, citou no que o FPSO Capixaba levou nove meses para obter as aprovações na esfera da Convenção Internacional da Basileia, que envolveu oito países dentro da ZEE [Zona Econômica Exclusiva] no trajeto do Brasil para a Dinamarca. A unidade, com 55 mil toneladas, foi desmantelada no estaleiro M.A.R.S., no norte do país nórdico.
Dourado compara que as unidades mais novas em operação possuem uma quantidade muito maior de aço. Ele lembra que o FPSO Almirante Tamandaré, que chegou recentemente para operação no campo de Búzios, no pré-sal da Bacia de Santos, tem 45 mil toneladas apenas em topsizes, o que representará, ao final do ciclo de vida, um grande volume de sucata de metais e de circularidade de equipamentos, como sistemas de injeção de gás e de água, entre outros itens.
“Toda cadeia de reúso e circularidade tenderá a ser mais complexa e, por outro lado, com bem mais oportunidades”, disse Dourado. No mundo, a SBM tem oito unidades no radar do descomissionamento nos próximos 10 anos: uma no Golfo do México e três em Angola, de operadores diferentes. No Brasil, têm potencial de descomissionamento até 2033 o FPSO Espírito Santo, operado para a Shell, além do Cidade de Ilhabela, Anchieta e Paraty, operados para a Petrobras.
O FPSO Capixaba, que produziu mais de 220 milhões de barris para a Petrobras, se encontra em processo de mapeamento e limpeza de materiais perigosos. Dourado conta que foi o primeiro FPSO exportado no Brasil de acordo com a convenção internacional da Basileia, que regulamenta a movimentação de materiais perigosos. “A aprovação envolveu Ibama e o órgão competente dinamarquês e o consenso de oito países”, destaca Dourado.
A Modec avalia que existe uma série de desafios para o desmantelamento de FPSOs no Brasil e que envolvem uma grande engenhosidade de investimentos e de estratégias para a atividade se consolidar no país. A empresa identifica um grande número de incertezas relacionadas a períodos longos de planejamento para a execução desses projetos. Durante o workshop, o gerente PMO da Modec Serviços de Petróleo do Brasil, Jime Braga, ressaltou que o processo começa a ser pensado cinco anos antes da data final de produção, que é uma previsão contratual que pode ser estendida ou não, dependendo das análises econômicas do operador e técnica da capacidade do ativo.
Braga considera que o fim da produção representa uma grande incerteza dos projetos de descomissionamento, que demandam diversos departamentos que precisam trabalhar em sincronia dentro do grupo e com todos os envolvidos com a operação da unidade. O engenheiro diz que os FPSOs têm restrição de espaço a bordo e as novas unidades estão sendo construídas cada vez maiores e com capacidade produtiva mais alta. Como a ocupação de espaço a bordo é grande, sobram menos áreas para materiais e execução de serviços que precisam de espaço para armazenamento de resíduos e embarque de equipamentos, por exemplo.
Braga lembra que essa é uma atividade que ainda está exigindo a adaptação da indústria, cadeia de suprimentos, governo e autarquias no Brasil. Sem facilidades da embarcação atracada em instalação portuária, aumenta o risco de execução de projetos de desmantelamento no mar, além do progresso mais lento e do estresse às cadeias de suprimento. “Se houvesse uma segurança de que a embarcação poderia ser descomissionada no Brasil, muitas atividades seriam trazidas para o estaleiro, beneficiando toda a cadeia produtiva”, analisa Braga.
Ele acredita que são investimentos que poderiam ficar no Brasil, tanto pelo interesse dos proprietários e operadores do FPSO, quanto pelo interesse do desenvolvimento industrial. “Em nossas análises, consideramos inviável fazer descomissionamento no Brasil. A indústria e a Modec observam com cautela e interesse o que está acontecendo pioneiramente na Petrobras (P-32, no Estaleiro Rio Grande). Pode ser uma grande janela de oportunidades para evitar levar a embarcação para um estaleiro no exterior e lá executar todo investimento em descomissionamento”, comenta Braga.
Um projeto de lei propõe inserir o termo ‘descomissionamento’ entre as definições técnicas no artigo 6ª da Lei 9.478/1997, que trata do regime tributário conhecido como ‘Repetro Sped’. O objetivo é eliminar uma das principais inseguranças jurídicas apontadas pelos operadores de plataformas que impedem a realização do desmantelamento de unidades marítimas em estaleiros e em instalações no Brasil. O PL 3.260/2024, de autoria do deputado Hugo Leal (PSD/RJ), foi apresentado em agosto e, até o fechamento desta edição, aguardava designação de relator na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CMADS) da Câmara dos Deputados.
Esse fator tem grande relevância porque os custos do projeto são precificados tendo em vista quanto será pago de tributos. As dúvidas têm relação com o enquadramento tributário de um FPSO em águas jurisdicionais brasileiras (AJB) e se os impostos vão voltar no descomissionamento, pelo não entendimento do enquadramento da atividade de descomissionamento no regime do Repetro.
“Isso traz uma incerteza jurídica de tal magnitude que hoje ninguém toma esse risco no mercado, dentre os operadores privados. Levamos embarcações para fora”, diz o gerente PMO da Modec Serviços de Petróleo do Brasil. “Se esse tema for inserido dentro dos regimes eletivos para concessão do benefício fiscal, teoricamente, o problema acaba e o empresário passa a ter segurança jurídica com relação à execução do descomissionamento no Brasil, permitindo o surgimento de uma grande indústria”, acrescenta Braga.
Dourado, da SBM, avalia que a questão tributária é uma realidade para proprietárias de FPSOs que inviabiliza a atividade, se a empresa tiver que pagar impostos para reciclar no país onde a unidade encerrar a operação. Ele também chama a atenção para a necessidade de adequação do NORM. “Existe bastante regulamentação, mas essa nova componente de disposição final [NORM] no país tem que ser discutida”, comenta o responsável pela divisão global de descomissionamento, design e operação da SBM.
O Repetro é o regime aduaneiro especial de exportação e de importação de bens destinados às atividades de pesquisa e de lavra das jazidas de petróleo e gás natural. O Repetro-Sped é um regime tributário especial e regime aduaneiro especial de utilização econômica de bens destinados às atividades de exploração, desenvolvimento e produção de petróleo e de gás natural. Este regime estará vigente até o final de 2040. A lei de 1997 dispõe sobre a política energética nacional, as atividades relativas ao monopólio do petróleo, instituiu à época o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) e a Agência Nacional do Petróleo (ANP).
Saindo da esfera das plataformas, um levantamento da Associação Brasileira dos Armadores de Cabotagem (Abac), entre suas 10 associadas, listou 18 navios de cabotagem, construídos entre 2008 e 2015, que são potenciais ativos para desmantelamento entre 2030 e 2040, considerando um ciclo de vida útil médio de 25 anos nesse tipo de embarcação. A relação abrange porta-contêineres, graneleiros, navios tanque e barcaças. A Abac, no entanto, considera que viabilizar a atividade de reciclagem de navios no Brasil passa pela tomada de decisões, entre as quais a ratificação e regulamentação da Hong Kong Convention (HKC), que entra em vigor em 2025.
A lista da associação inclui: seis navios da frota da Aliança, construídos entre 2012 e 2014; três da Norsul (2010 a 2012); um da Flumar (2010); dois da Hidrovias do Brasil (2012 e 2015); três da Log-In (2009 a 2019); e três da Mercosul (2008 a 2015). A Abac também observa no mercado de cabotagem 24 navios petroleiros e gaseiros que operam para a Transpetro e que foram construídos entre 2009 e 2019.
A partir da Lei 14.301/2022, que criou o BR do Mar e flexibilizou as regras de afretamento, uma empresa brasileira de cabotagem não precisa mais ter propriedade de navio brasileiro, apenas um registro para operar no modal. Para o diretor executivo da Abac, Luis Fernando Resano, essa mudança teve consequência direta no tema reciclagem, já que navios agora podem arvorar a bandeira brasileira, afretados a caco nu, com a propriedade em outro país. Ele acrescenta que já não existe mais a regra que impedia que navios financiados com recursos do Fundo da Marinha Mercante (FMM) fossem vendidos sem autorização do conselho diretor do fundo setorial (CDFMM), mesmo depois de quitados.
A leitura é que, para alcançar esse objetivo, será necessário criar atratividade, em vez de impor a reciclagem no Brasil, porque a propriedade não é mais brasileira. Além disso, a demanda interna pode não ser suficiente para que esse segmento tenha escala no Brasil. Outro desafio é como serão aplicadas as regras tributárias quando uma embarcação precisar ser internalizada no país apenas para ter o material processado.
“Se nossa legislação de regulamentação da convenção de Hong Kong não estabelecer qualquer trava para isso, os navios brasileiros não serão automaticamente reciclados no Brasil”, comentou Resano durante o workshop promovido pelo Cenpes/Petrobras e o CESS/UFF. Ele observa que a HKC ainda possui alguns conflitos com convenção da Basileia que precisam ser solucionados, evitando assimetrias na regulamentação em diferentes países.
A avaliação é que, se o país não definir a regulamentação da convenção, a tendência pode ser a venda antecipada do ativo e a reciclagem em outro país ao final da vida útil. Segundo Resano, é necessário ratificar e regulamentar a HKC, ainda que alguns ajustes ainda estejam em debate na Organização Marítima Internacional (IMO). “É importante caminhar para ter a convenção ratificada e regulamentada. Talvez somente ratificar seja muito pouco. Precisamos regulamentar para viabilizar a atividade dos estaleiros, mas também da armação brasileira”, analisa Resano.
A Empresa Gerencial de Projetos Navais (Emgepron) considera que está alinhada, junto à Marinha do Brasil, aos entendimentos do mercado e dos órgãos reguladores nacionais e internacionais sobre a relevância dos temas de descomissionamento e reciclagem de embarcações, civis e militares, como das demais estruturas marítimas ao final do ciclo de vida. O coordenador de construção e reparação naval e gerente de projetos da Emgepron, Valmar Pereira Cabral Júnior, disse no workshop que os navios da força naval que hoje estão previstos para descomissionamento e reciclagem constam de uma lista classificada.
Cabral Júnior pondera que, por se tratar de bens de defesa nacional que cumprem tarefas da Marinha, não é possível afirmar, previamente, qual navio que vai entrar no próximo projeto de baixa do serviço ativo — desmantelamento e reciclagem, embora a composição da esquadra seja de conhecimento geral. Ele diz que a demanda é perene e que tudo que é público desses processos é informado pela Marinha.
“Tanto a Marinha do Brasil quanto a Emgepron estão completamente alinhadas com o novo entendimento do mercado e dos órgãos reguladores para esse assunto”, afirmou no evento. Na ocasião, o coordenador da Emgepron ressaltou que os maiores navios da esquadra atualmente não chegam a 50 mil toneladas de deslocamento, não se comparando em termos de tonelagem de aço com a tonelagem de plataformas e outros ativos offshore ao final da vida útil.
Cabral acredita ser possível ao Brasil ingressar no mercado de desmantelamento e reciclagem de forma ordenada, com governança bem estabelecida, regras e legislações que permitam aos stakeholders entrarem com segurança nesse assunto. Ele lembra que no mundo somente cerca de 40 estaleiros estão certificados pelas regras de reciclagem de navios da União Europeia (1.257/2013). O coordenador cita que, desse grupo, apenas um está localizado nos Estados Unidos e nenhuma instalação ocupa território no ‘cone sul’.
Ele vê espaço para que alguns estaleiros brasileiros participem como instalações de reciclagem, dentro de um grande cluster, com indústrias siderúrgicas e empresas recicladoras. “Seria importante que, no nascedouro de toda legislação que vai regulamentar esse mercado, fossem criadas condições para que um ou outro estaleiro ao longo da costa brasileira efetivamente se interessasse”, sugere Cabral.
A Emgepron é dedicada ao gerenciamento de projetos de interesse da Marinha do Brasil e, de forma subsidiária, também de projetos de outros entes privados ou públicos que eventualmente a convidem a participar. “Temos a ideia de inserir estaleiros e outras instalações nesse mercado de descomissionamento e reciclagem. Faz sentido quando vemos o ativo nascendo na engenharia (projetista), atendendo aos requisitos, desejos e aspirações do mercado. No final, seria bom se tudo isso ou um maior percentual das unidades fosse efetivamente reciclável”, conclui.