A construção naval de médio porte no Brasil vive um momento crucial, marcado por inovações tecnológicas, novos projetos sustentáveis e a busca por capacitação de mão de obra especializada. Estaleiros em todo o país encontram oportunidades para crescer, mesmo diante de desafios como a descarbonização e a competitividade global.
Com uma carteira diversificada e iniciativas para atender às demandas nacionais e internacionais, os estaleiros de médio porte fortalecem sua posição no mercado, apostando em soluções sustentáveis, modernização e políticas de incentivo.
Os estaleiros especializados em embarcações de médio porte têm registrado uma demanda crescente, impulsionada principalmente pela renovação de frotas e aumento de serviços de docagem e reparos. Adalberto Souza, diretor-executivo do Estaleiro Wilson Sons, relatou um aumento de 86% na receita do estaleiro em 2024, totalizando R$ 41,4 milhões, devido à prestação de serviços a terceiros.
“Durante o período, o estaleiro realizou 17 docagens para terceiros, sendo 10 rebocadores portuários, um empurrador, duas barcaças, duas embarcações de apoio offshore, um navio de GLP e uma embarcação de transporte rápido de tripulação — nos nove primeiros meses de 2023/9M23, foram realizadas sete docagens. Ao longo de 2024, o estaleiro também entregou os rebocadores WS Dorado e WSOnix à nossa frota, atualmente com mais de 80 embarcações que atuam ao longo da costa brasileira”, destacou Souza.
Essa tendência também foi observada no Estaleiro São Miguel, que alcançou um recorde de 62 docagens em 2024, segundo seu coordenador comercial, Marcos Porto. O estaleiro entregou quatro rebocadores e outras embarcações, e percebeu um aumento de 15% nas cotações em relação ao ano anterior. “A procura por embarcações para atender aos novos contratos obrigou os estaleiros brasileiros a diversificarem suas atividades. Alguns estão retomando após alguns anos de paralisação”, comentou Porto.
Conforme dados do Sindicato Nacional da Indústria da Construção Naval e Offshore (Sinaval), a construção naval brasileira trabalha com 13 diferentes segmentos, incluindo rebocadores, barcaças e embarcações militares, o que amplia as possibilidades para os estaleiros de médio porte. Em 2023, o Brasil respondeu por cinco novas encomendas, contrastando com a líder mundial China, que registrou 964 embarcações no mesmo período.
A demanda crescente não se limita ao mercado doméstico. Estaleiros brasileiros também começam a explorar possibilidades de exportação. A integração de tecnologias sustentáveis e a adaptação a padrões internacionais de emissões ampliam a competitividade do setor em mercados externos.
Os principais estaleiros brasileiros têm expandido sua carteira de projetos, investindo em soluções sustentáveis e de alta eficiência. O Estaleiro Wilson Sons planeja construir três novos rebocadores com tecnologia sustentável, atendendo aos padrões da IMO TIER III, que reduzem em até 70% os óxidos de nitrogênio. Essas embarcações também utilizam tecnologia para diminuir em até 14% o consumo de combustíveis fósseis.
“Em 2025, a Wilson Sons iniciará a construção da nova série de três rebocadores com tecnologia sustentável e grande potência, no estaleiro do Guarujá. São da classe ASD 2312 — 23 metros de comprimento e 12 metros de largura —, com propulsão azimutal e potência de 70 toneladas de bollard pull (tração estática), capazes de apoiar supernavios de contêineres de 366 metros, em manobras de atracação e desatracação nos principais portos do país. O objetivo é a renovação e modernização da frota”, disse o diretor à Portos e Navios.
De forma similar, o Estaleiro Rio Maguari está construindo balsas e empurradores para o transporte de grãos, além de rebocadores portuários para clientes nacionais e internacionais. O objetivo da empresa é se inserir no mercado global de rebocadores, declarou o diretor comercial Fábio Vasconcellos. O estaleiro também planeja exportar rebocadores, consolidando sua presença internacional.
“Os contratos em andamento são de balsas e empurradores para o transporte de grãos para nossos clientes tradicionais do agronegócio. Além disso, estamos construindo três rebocadores portuários para a Svitzer e dois para a Sulnorte, de 70 TBP cada e comboios fluviais para minérios para a LHG”, destacou Fábio Vasconcellos.
Os investimentos recentes realizados pelo Estaleiro Rio Maguari, conforme explica seu diretor comercial, somaram cerca de R$ 12 milhões e foram direcionados à ampliação da capacidade produtiva. Entre as melhorias, destacam-se a construção de novas oficinas e a aquisição de equipamentos avançados voltados para o aumento de produtividade e operações de içamento de cargas. Essas iniciativas visam não apenas atender às demandas crescentes do setor, mas também modernizar as operações, garantindo maior eficiência e competitividade no mercado nacional e internacional.
Na visão de Vasconcellos, os principais desafios para a viabilização de novos projetos na indústria naval brasileira incluem a manutenção de políticas de incentivo, como as fomentadas pelo Fundo da Marinha Mercante (FMM). Ele destaca que a continuidade da disponibilização desses recursos é essencial para o financiamento de construções navais. Além disso, uma política consistente de conteúdo local, especialmente nas encomendas realizadas pelo sistema Petrobras, é apontada como um fator crucial para fortalecer a cadeia produtiva e incentivar a inovação tecnológica no setor.
Outro exemplo de avanço vem do Estaleiro Navship, que concluiu em 2024 a construção de uma embarcação PSV4500 e planeja iniciar a produção de seis novas embarcações a partir de 2025.
“A demanda do estaleiro no ano de 2024 foi bem similar à de 2023, onde o foco maior foi em conversões, reparos e manutenção de embarcação. No total foram feitas 21 docagens em 2024 contra 24 em 2023. Além disso, em 2024 o estaleiro concluiu a construção de uma embarcação PSV4500 e a conversão/preparação de 18 embarcações PSV de diferentes tipos, incluindo embarcações dos tipos OSRV, AHTS e RSV, para novos contratos.”, explicou Ricardo Chagas, diretor do estaleiro.
O Estaleiro Camorim, por sua vez, tem se destacado pelo uso intensivo de um cais linear para atracação e movimentação de grandes cargas, além de integração de serviços logísticos em suas operações.
“Em termos de construção, entregamos dois Line Handlers, um totalmente construído e o outro revitalizado dentro do próprio estaleiro, reafirmando nosso compromisso com a constante ampliação da frota interna. Já no segmento de reparos, nosso foco esteve na manutenção da frota própria, composta atualmente por mais de 140 embarcações”, destacou Eduardo Adami, diretor comercial da Camorim.
A escassez de mão de obra qualificada é um desafio constante. De acordo com Adami, a empresa tem investido na capacitação de seus mais de 1,2 mil colaboradores, em resposta às demandas crescentes por serviços especializados.
“Com o aumento da complexidade dos serviços e a constante renovação tecnológica, identificamos a necessidade crescente de mão de obra ainda mais qualificada. Embora nossos profissionais sejam experientes e altamente capacitados, acompanhamos de perto essa tendência para garantir que continuemos a oferecer excelência em nossos serviços.”, ressaltou Adami.
Essa situação é corroborada por Marcos Porto, do Estaleiro São Miguel, que destacou a necessidade de investir na requalificação de profissionais após três décadas de estagnação na indústria naval. Iniciativas internas, como programas de treinamento em ferramentas de qualidade, têm sido fundamentais para suprir essa carência.
No contexto global, a escassez de profissionais especializados não é exclusividade do Brasil. Estaleiros na China e Coreia do Sul implementam programas de treinamento intensivo para atender à demanda crescente, segundo o Sinaval.
A crise econômica mundial dos anos 1980, somada à abertura da economia brasileira à concorrência estrangeira na década de 1990, teve impactos profundos sobre a indústria naval nacional. Esse cenário foi agravado pela operação Lava Jato, iniciada em 2014, que resultou em uma crise econômica significativa e na demissão de milhares de trabalhadores qualificados do setor.
Como consequência, a curva de aprendizagem no segmento naval foi severamente interrompida. Segundo Marcos Porto, coordenador comercial do estaleiro São Miguel, o número de trabalhadores no setor despencou de 82 mil em 2014 para cerca de 20 mil atualmente. Esse declínio é especialmente visível em polos históricos como Niterói, que já contou com 15 mil trabalhadores e hoje possui apenas 1,3 mil.
Apesar dos desafios enfrentados pela indústria brasileira nas últimas décadas, como a concorrência de produtos importados e a falta de investimentos robustos em infraestrutura e tecnologia, o setor apresenta sinais de reação. No segundo trimestre de 2024, a produção industrial brasileira cresceu 2,9% em comparação com o mesmo período do ano anterior, superando a média global de 2,0% registrada no primeiro semestre.
Diante desse histórico de estagnação, Marcos Porto destaca a necessidade urgente de investir tanto na qualificação de novos profissionais quanto na requalificação da mão de obra remanescente. A revitalização do setor exige esforços conjuntos de empresas e instituições de ensino, visando recuperar competências técnicas perdidas ao longo das últimas décadas. Além disso, a criação de políticas públicas de incentivo e a retomada de grandes projetos navais podem ser catalisadores para o aumento da força de trabalho e a recuperação da competitividade da indústria brasileira.
Este avanço reflete o impacto positivo da introdução de tecnologias emergentes, como robótica, inteligência artificial e soluções sustentáveis, que estão transformando o panorama competitivo das empresas e promovendo uma adaptação constante a novos cenários globais
Segundo Marcos Porto, do estaleiro São Miguel, para sustentar este crescimento, especialistas destacam a necessidade de potencializar a inovação por meio de investimentos em pesquisa e desenvolvimento, além do fortalecimento da educação básica e tecnológica. Parcerias entre instituições públicas e privadas têm o potencial de articular programas que integrem setores produtivos e governamentais.
Entretanto, a gestão de pessoas desponta como um dos principais desafios, especialmente diante das profundas mudanças na produtividade impulsionadas pela inovação tecnológica. A capacitação de líderes é vista como essencial para garantir a competitividade em um cenário dinâmico e altamente competitivo.
Programas educacionais especializados no Brasil têm sido limitados, em grande parte devido à instabilidade do mercado nos últimos anos. Estímulos governamentais para a formação de novas turmas e parcerias entre estaleiros e instituições de ensino podem ser a chave para resolver essa questão. Ricardo Chagas, do Estaleiro Navship, destacou: “Com a redução das obras, tivemos que assumir a responsabilidade pelo treinamento interno de nossos profissionais”.
A descarbonização é uma prioridade nos novos projetos de embarcações. O Estaleiro Wilson Sons incorporou a tecnologia twin fins em seus projetos para reduzir emissões de gases de efeito estufa. Adalberto Souza, diretor-executivo do estaleiro, destaca que o último grande investimento da empresa ocorreu há 10 anos. Atualmente, o foco está na manutenção do ativo existente, que emprega tecnologia de ponta para maximizar a eficiência operacional. O estaleiro, localizado no Guarujá e com uma área de 18 mil metros quadrados, conta com diferenciais estratégicos, como o único dique seco no complexo portuário de Santos. Entre suas capacidades, está a execução simultânea de serviços de docagem em diferentes embarcações, uma flexibilidade proporcionada pela comporta intermediária do sistema de diques. Esse recurso permite ajustar parcialmente o alagamento do dique conforme as necessidades específicas de manutenção, otimizando os processos e garantindo maior agilidade nos atendimentos.
Por outro lado, o Estaleiro Navship enfrenta o desafio de alinhar-se às crescentes demandas por embarcações mais eficientes, um reflexo tanto de exigências regulatórias quanto de iniciativas próprias. “A baixa demanda por novas construções nos últimos anos impactou negativamente a cadeia de suprimentos, reduzindo sua capacidade de entrega, especialmente em itens específicos para o setor naval. Outro desafio importante é relacionado às flutuações no mercado de petróleo e gás, já que grande parte da demanda por embarcações no Brasil está ligada ao setor offshore. Por fim, a crescente busca por embarcações mais eficientes, seja por exigências regulatórias ou por iniciativas próprias, também impõe novos desafios importantes ao setor”, disse Ricardo Chagas à Portos e Navios.
Esse compromisso com a sustentabilidade também se reflete nos investimentos em infraestrutura. A Camorim, por exemplo, ampliou sua capacidade operacional, com a incorporação de novas cábreas e guindastes, além de um terminal de apoio com área adicional de 10 mil metros quadrados.
“Para a Camorim, o principal desafio no próximo ano será equilibrar a eficiência operacional do estaleiro com a necessidade de atender uma frota própria que não para de crescer — somente este ano, mais de 17 embarcações foram incorporadas. Paralelamente, há uma crescente demanda externa por serviços de manutenção, armazenagem e atracações e docagem”, explicou Adami.
Nos últimos 12 meses, o Estaleiro Belov registrou um aumento expressivo na procura por projetos de construção e serviços de reparo, consolidando uma tendência de recuperação no setor naval. A elevação na demanda por balsas e empurradores para transporte em hidrovias gerou contratos significativos, enquanto os reparos em rebocadores, especialmente na Bahia, demonstraram a agilidade e eficiência das soluções oferecidas pelo estaleiro. “Nosso crescimento reflete a recuperação do mercado e o aumento nas demandas específicas por embarcações de alta tecnologia, como balsas e empurradores, além de um cenário positivo para serviços de reparo”, destaca Juracy Vilas-Bôas, diretor do Grupo Belov.
Atualmente, o portfólio do estaleiro abrange diversos projetos em diferentes fases, muitos deles confidenciais. Contudo, destaca-se a manutenção de um dique flutuante, que está sendo atualizado para sustentar o crescimento contínuo das operações. Paralelamente, o estaleiro avança em tecnologia disruptiva com a construção de uma embarcação autônoma para inspeção submarina, reafirmando seu pioneirismo no setor.
A empresa também relata um aumento substancial nas consultas e orçamentos, indicando uma recuperação de mercado, ainda que a demanda reprimida por novas construções não tenha sido completamente atendida. A busca por embarcações tecnológicas e sustentáveis, impulsionada por novos contratos da Petrobras, favorece estaleiros médios e pequenos, como o Belov, que está bem-posicionado para absorver essa demanda.
Quanto à qualificação de profissionais, o estaleiro observa uma crescente necessidade de mão de obra especializada, especialmente devido à expansão dos projetos. Para enfrentar esse desafio, o Belov investe em treinamentos que alinham profissionais às novas tecnologias e exigências do setor. “A escassez de mão de obra qualificada é um dos maiores gargalos do setor. Por isso, estamos ampliando nossos programas de capacitação, garantindo que tenhamos profissionais preparados para atender às exigências do mercado em constante evolução”, reforça Vilas-Bôas.
Os próximos anos prometem um mercado robusto, com o estaleiro vislumbrando um vasto potencial para embarcações ecológicas e inteligentes. A experiência pioneira do grupo, com projetos como os primeiros empurradores híbridos e DSVs com sistema diesel-elétrico, reforça sua posição na vanguarda da construção naval sustentável.
Investimentos recentes foram direcionados à modernização do dique flutuante, reengenharia de processos e adoção de tecnologias de automação e design. Essas melhorias visam aumentar a eficiência, reduzir custos e aprimorar os serviços oferecidos aos clientes. Porém, o setor enfrenta desafios, como a adaptação às rigorosas políticas ambientais, escassez de mão de obra qualificada, instabilidades econômicas e fragilidades nas cadeias de suprimento. O Estaleiro Belov, no entanto, confia em sua resiliência e visão estratégica de longo prazo para superar esses obstáculos e fortalecer sua posição no mercado naval.
No plano internacional, estaleiros europeus têm investido em tecnologias verdes, incluindo motores elétricos e híbridos. No Brasil, avanços semelhantes são fundamentais para atender às novas regulações ambientais e conquistar mercado externo.
Apesar dos avanços, o setor ainda enfrenta obstáculos significativos. A dependência do mercado offshore e as flutuações no preço do petróleo representam desafios adicionais. Ademais, a falta de previsibilidade nas encomendas e o ambiente regulatório complexo continuam a impactar a competitividade da indústria.
Mesmo assim, há um otimismo em relação ao futuro. Incentivos governamentais e a ampliação do conteúdo local são fundamentais para consolidar a indústria naval brasileira. O Sinaval defende a criação de novas políticas de incentivo para equalizar as assimetrias competitivas com países asiáticos. Políticas como a proteção de bandeira, comuns nos EUA, poderiam ser adaptadas ao mercado brasileiro para garantir previsibilidade de encomendas. Estudos também indicam que a modernização da infraestrutura dos estaleiros pode elevar significativamente a produtividade e a competitividade. O setor privado, em parceria com o governo, pode desempenhar um papel crucial no financiamento de melhorias tecnológicas e operações mais sustentáveis.
A indústria naval brasileira tem potencial para se consolidar como referência na construção de embarcações de médio porte, equilibrando inovação, sustentabilidade e competitividade. O compromisso com a capacitação de mão de obra, aliado à adoção de tecnologias de ponta, garante uma base sólida para o crescimento. Mas é essencial que o setor continue a trabalhar em conjunto com o governo e entidades reguladoras para superar os desafios e garantir um futuro próspero.